Pintura de Rembrandt van Rijn (1606-1669)
A volta do Filho Pródigo, museu "Hermitage"
St. Petesburg (Rússia).
1) QUEM É ESSE LUCAS?
Janela
Desde os primeiros séculos do cristianismo o terceiro Evangelho na ordem
tradicional da Bíblia é atribuído a Lucas, discípulo de Paulo. O próprio Apóstolo, no
final de sua carta a Filêmon (v. 23), cita Lucas entre seus colaboradores.
A Epístola aos Colossenses, atribuída a Paulo, manda lembranças de "Lucas, querido médico" (4,14).
A partir dessas informações (médico e discípulo de Paulo) vem tudo o mais que
costumamos ler e ouvir da literatura religiosa a respeito do autor do terceiro Evangelho.
As Comunidades Apostólicas
O que menos importa é que seja mesmo esse Lucas o autor do Evangelho. Os
que o atribuíram a ele, queriam que o Evangelho tivesse como autor o nome de algum
Apóstolo ou alguém ligado a eles. Para a comunidade que nos deu o Evangelho não
tinha a menor importância o nome de quem escreveu, importava que o Evangelho
confirmasse a sua fé, iluminasse a sua vida.
Mais importante é o destinatário, Teófilo, que quer dizer "amigo de Deus".
Os "amigos de Deus" cuja fé o Evangelho vem confirmar e cuja vida vem
clarear, eram, disso não há dúvidas, de comunidades fundadas por Paulo.
Vamos pensar nas de Corinto. Gentios, não judeus, eram considerados pecadores. A maioria da
comunidade era de gente pobre, sem estudo e sem nome (1Cor 1,26). Dava-se grande
importância à oração e ao Espírito Santo (1Cor caps. 12 a 14). Paulo enfrentou com
muita garra os que queriam permanecer fiéis demais ao judaísmo. Parecia que ensinava
a deixar de lado toda a herança de fé recebida dos judeus (At. 21,21).
O Evangelho tinha que fortalecer a fé e esclarecer esses problemas da
comunidade. O nome de quem o escreveu era de menos.
As comunidades de hoje
Hoje a preocupação é com o autor, seu nome e seus títulos. Hoje a aparência está
acima do ser e até mesmo do ter. Direitos autorais e o que isso significa em termos
econômicos é também questão fundamental. Parece mais importante saber quem está
falando do que entender o que ele está dizendo.
Precisamos descobrir que o que interessa é se o que está sendo dito fortalece a fé
e traz alguma luz para as situações e problemas vividos. O que deve nos interessar na
leitura do Evangelho é de que maneira ele nos pode fortalecer a fé e ajudar a enfrentar
com mais clareza e disposição os desafios do nosso dia a dia.
2) O CONTADOR DE HISTÓRIAS
Janela
O autor do terceiro Evangelho – vamos continuar chamando-o de Lucas – é um verdadeiro
artista para contar um episódio. Mesmo quando ele o toma de Marcos, as modificações que
introduz são exatamente para tornar a narrativa mais bonita e cativante.
Ele não costuma cruzar os acontecimentos, primeiro termina de contar um para depois começar o outro.
É o que faz quando conta a visita de Maria a Isabel e o nascimento de João Batista.
Maria esperou o nascimento de João, evidentemente. Mas ele termina a narrativa da visita para
depois começar a falar do nascimento.
As Comunidades Apostólicas
Nos acontecimentos encontramos os apelos de Deus. As comunidades de Lucas sabiam admirar,
sabiam saborear a presença de Deus nos acontecimentos. Se no Evangelho segundo Marcos cada
detalhe do que ele conta tem um significado, tem um simbolismo, Lucas perde alguns desses
simbolismos para criar uma história mais viva e vibrante. E ao final as pessoas louvam a Deus,
celebram sua presença no acontecimento.
Os acontecimentos de Jesus e da comunidade estão dentro dos acontecimentos do mundo.
Deus age na história da humanidade. As comunidades de Paulo viviam, quase todas, em grandes
cidades do Império Romano e sabiam que a mensagem de Jesus é para o mundo inteiro.
Por isso precisa lembrar que, por ocasião do nascimento de Jesus, Herodes era rei da Judéia (1,4),
Augusto era o Imperador em Roma e Quirino, o governador da Síria (2,1-2). Por isso é preciso citar
todas as autoridades quando João Batista e, logo depois, Jesus começam a pregar (3,1-2).
As comunidades de hoje
O Evangelho segundo Lucas vem nos convidar a colocar os pés no chão.
Queremos talvez viver um evangelho desligado da vida, fora da história, fora do mundo, sem compromisso
com os acontecimentos. Há talvez muita preocupação com doutrina e pouca com a realidade vivida.
Decorar um catecismo e rezar parece ser o resumo da vida cristã. Enquanto isso, os incompetentes
pobres continuam sendo sugados pelos competentes manipuladores do mercado. Enquanto isso, política
continua sendo a arte de se aproveitar do bem público em proveito pessoal. Enquanto isso, a violência
continua sendo a lei suprema.
3) LUCAS, O CARISMÁTICO
Janela
O Evangelho segundo Lucas está repleto de alusões ao Espírito Santo. As histórias que ele conta têm sempre um
clima muito mais emocional do que as narrativas dos mesmos episódios em Marcos ou em Mateus. Muitas terminam
com um louvor de Deus, que não se encontra nos outros Evangelhos. Este Evangelho é o que mais insiste na necessidade da oração.
Tudo são características do atual movimento de renovação carismática e, daí, o título.
As comunidades apostólicas
Nos capítulos 12, 13 e 14 de 1Cor Paulo aborda o movimento carismático nas comunidades de Corinto. No capítulo 12 mostra
como a diversidade dos dons pode ser útil na organização da comunidade e como o pensamento da comunidade como corpo de Cristo,
pode corrigir as tentações do individualismo e do estrelismo. No capítulo 13 fala do caminho acima de todos, o do amor, e no capítulo 14
volta novamente aos temas do movimento, a profecia e o falar em línguas.
Isso nos mostra o que acontecia nas comunidades que nos deram este Evangelho. Eram comunidades que prezavam muito a oração,
que recorriam frequentemente ao Espírito Santo e o viam agindo em todas as circunstâncias. Eram comunidades que buscavam muito
a emoção e a admiração pela atuação de Deus e do seu Espírito. Tudo isso devia marcar o Evangelho nascido no seio de uma dessas comunidades.
As comunidades de hoje
O nosso mundo parece cada vez mais frio. Os interesses econômicos por um lado e, por outro, a busca apenas do que é
científico, racional, lógico, explicável, criam o medo da emoção, do imponderável, do inexplicável.
A oração, busca de Deus, de sua força, do seu Espírito, fica esquecida.
Lucas pode nos lembrar hoje que é preciso rezar mais e com maior verdade, colocar-se mesmo no colo de Deus, deixar que as palavras
conduzam o pensamento até o Pai, que o Espírito fale dentro da gente, mesmo sem palavras. A lei do Espírito reduz a nada a lei da letra.
Precisamos aprender a nos maravilhar novamente. Não está tudo previsto, a grandeza de Deus pode ser descoberta em cada pequena coisa e em
cada acontecimento, por mais insignificantes que pareçam. Assim o Evangelho segundo Lucas deve nos ajudar a redescobrir Deus, o seu Espírito e a oração.
4) JESUS, O SENHOR
Janela
Desde o início, o Evangelho segundo Lucas refere-se a Jesus como "o Senhor".
Aliás, quando os anjos avisam os pastores do nascimento de Jesus, dizem que ele é o Messias, ou Cristo, Senhor.
Diferente dos outros evangelistas, Lucas chama Jesus sistematicamente de "o Senhor", em quase todas as ocasiões.
As comunidades apostólicas
Este Evangelho nasceu nas comunidades cristãs fundadas pelo Apóstolo Paulo.
Paulo implantou o cristianismo nas grandes cidades que serviram para consolidar o Império Romano, como Filipos, Tessalônica, Corinto, Éfeso.
No Império, Senhor era só um, César, o Imperador. Ele era o grande patrono e todos no Império eram seus dependentes diretos ou indiretos.
Era considerado o deus próximo, capaz de atender às súplicas dos súditos.
O mesmo Lucas conta, no capítulo 17 dos Atos dos Apóstolos, que em Tessalônica Paulo e seus companheiros foram acusados de anunciar
Jesus como outro senhor ou rei além do Imperador. Jesus, um pobre galileu crucificado, um fracassado, um lixo da sociedade, ser chamado
de Senhor, acima do Imperador Romano era o máximo da subversão. Para os discípulos, porém, era a glória: O nosso Senhor não é mais o todo
poderoso César, é o pobre Jesus. Ele é o verdadeiro Senhor, ele é quem nos governa.
As comunidades de hoje
Na entrada de certas cidades vemos uma placa com os dizeres: "Jesus é o Senhor de tal cidade". Será que é mesmo?
O Senhor do mundo hoje não é César, nem o Presidente dos Estados Unidos, mesmo que o pretenda ser.
Aquele a quem, hoje, governantes e súditos obedecem sem restrição, chama-se Mercado.
E mercado significa competição, luta para ganhar dinheiro mais e mais, competência para isso, sucesso.
Ai dos incompetentes, dos fracassados, dos incapazes.
O Mercado nos ensina a desconfiar do pobre, do fracassado, do incompetente.
Dizer "Jesus é o Senhor" como dizia a comunidade de Lucas é afirmar o contrário, é acreditar no pobre, no fracassado,
naquele que teve como berço o cocho de um estábulo e como leito de morte a cruz.
Afirmar que Jesus é o Senhor significa acreditar no pequeno, no humilde, naquele que diante do mercado nada vale, mas que,
mais que todos, é capaz de partilhar, de colaborar, de ser solidário.
5) JESUS, O RADICAL
Janela
O Jesus que o Evangelho de Lucas nos apresenta não aceita fazer média, para ele é tudo ou nada.
Já de início, em Nazaré, onde Mateus e Marcos falam apenas da descrença da população em Jesus,
segundo Lucas (4,16-30) ele deixa a todos indignados, querendo matá-lo. Nas Bem-aventuranças,
onde Mateus tem "pobres por espírito", Lucas traz "Bem-aventurados os pobres" e "Ai dos ricos".
Entre os casos de vocação, que também se encontram em Mateus, ele acrescenta um (9,61-62).
Queria apenas despedir-se da família, mas Jesus responde: "Quem está segurando o arado olhando para trás não é digno de mim".
As comunidades apostólicas
As comunidades deste Evangelho estavam em uma grande cidade como Corinto.
Ali havia dois portos, um dava para o ocidente e o outro para o oriente.
Corria dinheiro e trabalho escravo. Havia de tudo, pessoas, costumes, religiões.
Tudo era religião, até a prostituição. O culto a Dionísio era de músicas ritmadas, danças e bebida para ajudar a entrar no clima.
No templo de Afrodite, atuavam cerca de mil prostitutas sagradas, que tinham até lugar reservado no teatro da cidade.
O que valia era o nome, o poder, a riqueza e o gozar as vidas.
Num ambiente desses, que se poderia esperar das comunidades cristãs, senão que levassem
tudo muito a sério, que fossem exigentes e radicais até? A figura de um Jesus radical e
exigente era o melhor remédio contra as tentações que giravam em torno dessas comunidades.
As comunidades de hoje
Hoje todo o mundo leva tudo a sério. Ou não? Para os meios de comunicação, a TV especialmente, quais os valores que não se podem desrespeitar?
A nossa prática religiosa não se parece, às vezes, com uma simples diversão, sem qualquer compromisso com a vida?
Reza-se para esquecer os problemas do dia a dia, para ter um momento de descanso ou de euforia, sem pensar no que ocorre lá fora.
Quais são os verdadeiros valores dos quais o cristão não pode abrir mão?
Se exigir demais, muitos se afastam. Então, o mais prudente seria fazer uma média, não exigir compromisso e concordar que hoje é assim mesmo,
manda quem pode e não há muito que fazer. É isso mesmo?
O Jesus radical do Evangelho de Lucas pode nos ajudar a pôr tudo nos devidos lugares, não?
6) JESUS, HOMEM DE ORAÇÃO
Janela
Em Lucas Jesus se coloca em oração com muito mais frequência do que nos outros Evangelhos.
Começa no batismo. Segundo Marcos e Mateus a voz de Deus e a descida do Espírito Santo acontecem
logo depois que Jesus sai da água, em Lucas isso ocorre quando Jesus está orando.
Em Mateus Jesus ensina o Pai Nosso no sermão da montanha, em Lucas foi "num dia, num certo lugar,
quando Jesus estava orando" e os discípulos lhe pediram que os ensinasse a rezar.
Em Lucas, em todos os momentos importantes Jesus se recolhe em oração.
As comunidades apostólicas
Este Evangelho nasceu em comunidades fundadas por Paulo no mundo grego e romano.
Aí se cultuavam vários deuses e para cada tipo de atividade humana havia um deus patrono.
Recorriam frequentemente a eles, fazendo promessas e orando. Costumavam repetir insistentemente fórmulas fixas de oração.
No Evangelho segundo Mateus (Mt 6,7-8) Jesus critica esse costume.
Lucas não poderia fazer isso, pois era um costume arraigado e Paulo, o fundador dessas comunidades,
valorizou e deu outra direção ao hábito de oração que as pessoas já traziam do paganismo. Além disso,
no início de suas cartas, ele sempre fala da sua própria oração constante de ação de graças e súplica
pela comunidade a quem escreve. Em 2Cor 12,1-6 fala também de uma profunda experiência de Deus que teve
em seus momentos de oração pessoal.
Jesus, apresentado a partir dessas comunidades e para essas comunidades, só poderia ser mesmo um homem
de oração e profunda comunhão com o Pai.
As comunidades de hoje
Nós rezamos bastante, não seria o caso de rezar menos e agir mais? Será que entramos mesmo em comunhão com o Pai,
como fazia Jesus? Ou rezamos como os gregos e romanos, pedindo ajuda aos patronos para resolver problemas pessoais de saúde,
de dinheiro ou de convivência?
Orar, rezar não é pedir, nem simplesmente falar com Deus. É colocar-se na presença dele, colocar nossas vidas, o
rumo que estamos dando ou pensamos dar às coisas e é deixar que Deus nos fale. Falar pouco ou quase nada e deixar
que Deus fale. É mais ouvir do que falar. É procurar mergulhar em Deus com tudo o que somos e fazemos para voltar
à luta tendo mais força e sabendo melhor como conduzir a nossa vida.
7) O PROGRAMA DE JESUS
Janela
Lucas coloca como primeira atividade pública de Jesus a visita a Nazaré.
É ele quem se levanta para ler a Escritura.
Lê de Isaías um texto que fala de alguém ungido pelo Espírito para anunciar o ano do jubileu,
ano do agrado de Deus, e outro texto que promete abrir os olhos aos cegos, os ouvidos aos surdos,
a boca aos mudos, o caminhar e agir aos mancos e aleijados.
E Jesus comenta que hoje (agora) vai se realizar o que ele acabava de ler.
As comunidades apostólicas
O ano do jubileu faz parte da tradição judaica e é descrito no capítulo 25 do Levítico.
Seu objetivo era não permitir que, depois da partilha igualitária das propriedades, ocorrida no início,
com o correr do tempo, uns poucos se tornassem donos de tudo e outros perdessem tudo, até a própria liberdade.
A cada cinquenta anos, no jubileu, o escravo recuperava a liberdade, as dívidas eram perdoadas, quem perdeu tudo,
recuperava a antiga propriedade. Assim, voltava-se à igualdade do início.
No ambiente das comunidades de Lucas não havia isso. Havia, no entanto, uma grande desigualdade social.
As pessoas já eram desiguais por nascimento, quem era de família importante seria sempre importante.
Por outro lado, em Corinto, por exemplo, os escravos eram dois terços da população.
Mesmo que conseguissem se libertar e até se enriquecer, continuavam com o estigma de classe inferior.
Para todos esses, o programa de Jesus é, sem dúvida uma boa notícia, pois "quem era escravo é um liberto do Senhor" (1Cor 7,22).
Agora são todos irmãos (Fm 16) e não há mais desigualdades (Gl 3,28).
As comunidades de hoje
Continuamos sendo uma sociedade de classes ou de estratos sociais.
Aparência (quer dizer origem, títulos, prestígio, ostentação) e riqueza fazem a grande diferença.
Os que não têm nem uma coisa nem outra são ninguém.
Para esses, o programa de Jesus é uma verdadeira boa notícia, um verdadeiro evangelho.
Alguém me perguntou certa vez porque Jesus fala em evangelizar os pobres. A resposta está aí.
Evangelizar significa levar a boa notícia.
E o programa de Jesus é trazer boa notícia para os escravizados, os atolados em dívidas,
os que perderam tudo, os proibidos de enxergar e de agir, os que já não são ninguém.
8) O EVANGELHO DE MARIA
Janela
O Evangelho de Lucas é o que mais se refere a Maria, mãe de Jesus.
O velho Zacarias, exercendo o sacerdócio no interior do Templo de Jerusalém,
não acredita na palavra do anjo. Maria, mulher, jovem, pobre, na desprezada Nazaré, acredita.
Não pensa nos seus problemas, vai imediatamente dar força a sua prima Isabel.
É acolhida como a mais abençoada das mulheres. Em seu cântico, diz que Deus age assim mesmo, dá força aos fracos e despreza os poderosos.
E afirma que todas as gerações haverão de bendizê-la. Ela guardava de cor todos os fatos do nascimento e da infância de Jesus.
Não seria ela a mulher do povo que diz a Jesus: "Bem-aventurados o ventre que te trouxe e os seios que te amamentaram" (Lc 11,27)?
Nos Atos dos Apóstolos, o outro livro de Lucas (At 1,14), ela está com os discípulos, que se preparam para a vinda do Espírito Santo e a missão no mundo.
As Comunidades Apostólicas
Quando Lucas coloca nos lábios de Maria um cântico (o Magnificat) semelhante ao de Ana, mãe de Samuel (1Sm 2,1-10) acrescenta
"todas as gerações me chamarão bem-aventurada" (Lc 1,48). É sinal de que nas comunidades de Lucas a devoção a Maria estava presente.
Essa geração de cristãos já a chamava de mulher feliz, bem-aventurada, abençoada por Deus. Paulo, o iniciador dessas comunidades,
já havia lembrado (Gl 4,4) que Jesus nasceu de uma mulher e debaixo da lei que fazia escravos, para nos tornar filhos e livres.
Desde o início Maria estava presente na espiritualidade das comunidades paulinas, donde nos veio este Evangelho.
As comunidades de hoje
A devoção a Maria, mãe de Jesus cresceu muito no decorrer dos séculos. Maria recebe por toda a parte, em todo o mundo, os mais variados títulos ou nomes.
É como uma pessoa querida e popular, que recebe muitos apelidos.
No Brasil ela é Nossa Senhora Aparecida. Não apareceu para repetir mensagens tradicionais. Sua mensagem é ela mesma, uma santinha negra,
encontrada por pobres pescadores, quando a escravidão aqui era a mais terrível e degradante. Seu recado é este,
"sou companheira dos últimos da sociedade brasileira, sou uma escrava, não uma rainha ou primeira dama".
Só isso já dá razão ao carinho que ela recebe de todos nós.
9) O EVANGELHO DOS POBRES
Janela
A preocupação com os pobres percorre todo o Evangelho de Lucas.
Jesus não nasce num berço de ouro, seu berço é o cocho de um estábulo.
Seu nascimento é anunciado aos pastores, gente pobre e temida, como os ciganos e sem-terras de hoje.
"Hoje nasceu para vós um salvador". Salvador dos pobres, ele será reconhecido na pobreza do berço.
Seu programa é a Boa Notícia para os pobres. As viúvas pobres estão presentes neste Evangelho bem mais do que nos outros.
As parábolas próprias de Lucas falam do homem sem nome, roubado e caído à beira do caminho,
falam dos pobres forçados a entrar para a festa do rei, falam do pobre Lázaro caído à porta do banquete diário do
rico e do abismo que os separa aqui e na eternidade.
As Comunidades Apostólicas
As comunidades que nos deram este Evangelho, em sua maioria eram pobres, mas preocupadas com outras mais pobres.
Quando se resolveu o problema com as comunidades da Judéia, foi combinado que as comunidades dos gentios não se
esqueceriam dos judeus pobres (Gl 2,10). As comunidades da Macedônia (Filipos, Tessalônica), apesar de sua profunda
pobreza participaram de uma campanha em favor deles (2Cor 8,1-2). Em Corinto a grande maioria era de pobres,
sem nome e sem estudo (1Cor 1,26), mas a minoria rica os humilhava até na celebração da Ceia do Senhor (1Cor 11,17-34).
As comunidades de hoje
Quando as autoridades da Igreja pareciam ter esquecido dos pobres e da pobreza, permitindo que o poder e a riqueza as governasse,
São Francisco inventou o presépio, para lembrar o nascimento de Jesus segundo Lucas. Ainda há lugar para o presépio?
Há ainda um ser humano roubado e caído à beira da morte e do caminho. Como na parábola, pode acontecer que aqueles que estão mais ligados
à religião e ao culto, o sacerdote e o levita, se esforcem por não vê-lo, enquanto o "inimigo", o sem religião, o samaritano, se debruce sobre ele.
Ainda há ricos que todos os dias dão esplêndidos banquetes, para os quais convidam os líderes da Igreja.
Os pobres Lázaros continuam esperando migalhas e só encontram solidariedade nos cães que se alimentam
de seu sangue e com a saliva lhes aliviam a dor das feridas.
10) O EVANGELHO DOS RICOS
Janela
O Evangelho de Lucas fala em ricos bem mais do que os outros.
Maria diz que Deus manda embora os ricos sem nada (1,53).
João Batista, recomenda a partilha e diz aos publicanos e aos soldados que não se aproveitem da função para enriquecer (3,11-14).
À bem-aventurança dos pobres, Jesus acrescenta o "ai" dos ricos (6,24 e ss.).
Recusa-se a entrar em disputa por herança e fala de um rico que pensava ter tudo (12,13-21).
Disse a quem o convidou, que, ao dar uma festa, não convidasse os ricos (14,12).
No capítulo 16 conta a parábola do rico banqueteador e o pobre Lázaro.
Um chefe - em Mateus seria um jovem - quer seguir Jesus, mas não é capaz, porque é muito rico (18,18-27).
Zaqueu, o rico odiado na cidade, vê a salvação entrar na sua casa, devolve o que roubou e partilha o que lhe sobra (19,1-10).
As Comunidades Apostólicas
Pelas cartas de Paulo conhecemos as comunidades nas quais nasceu o Evangelho de Lucas. As da Macedônia,
(Filipos, Tessalônica) eram extremamente pobres, mas generosas (2Cor 8,1-2). Em Corinto a maioria era pobre,
sem nome e sem estudos (1Cor 1,26), mas havia uma minoria rica que brigava por dinheiro na justiça dos pagãos
(1Cor 6,1-8) e criava problemas na celebração da Ceia do Senhor, humilhando os que nada possuíam e reproduzindo
as desigualdades que a própria celebração condena (1Cor 11, 17-34). Havia, porém, uma ou outra boa pessoa como
Erasto, que pode ter sido alta figura da administração pública de Corinto (Rm 16,23).
Essa realidade levou o evangelista a mostrar tanto a dificuldade que o rico tem para aceitar Jesus, quanto
a possibilidade de um deles tornar-se discípulo.
As comunidades de hoje
O contraste riqueza e pobreza é hoje o que mais dá na vista e é o maior escândalo do mundo chamado cristão.
No "maior país católico do mundo" maior é o abismo que separa o rico banqueteador do pobre Lázaro.
Nem a mais intensa devoção a Maria deixa ver que, no cântico que o Evangelho coloca em seus lábios,
ela fala de um Deus estranho ao pensamento único e dominante: um Deus anti-mercado,
que sacia com fartura a fome do pobre e despede o rico de mãos vazias.
Mas o rico tem salvação. Basta que desfaça as injustiças cometidas e aprenda a partilhar como Zaqueu.
11) O EVANGELHO DAS MULHERES
Janela
O Evangelho de Lucas é aquele onde se vê com mais frequência a presença das mulheres.
Isabel, não Zacarias, era filha de Aarão. Maria crê no mensageiro de Deus e se coloca a serviço.
Ela, não o marido, vai dar nome ao menino. Vai à casa de Zacarias visitar Isabel e é por ela comemorada.
A viúva de Naim só está em Lucas, como também a mulher sem nome, pecadora na cidade, que tem maior amor
do que o senhor fariseu chamado Simão. Só em Lucas um grupo de mulheres segue Jesus. Marta e Maria,
são modelos de diferentes acolhidas a Jesus. Uma mulher do povo bendiz a mãe de Jesus, a mulher encurvada
é símbolo de um povo três vezes submisso, a viúva insistente é símbolo da oração constante.
Lucas não esqueceu, como Mateus, a oferta da viúva pobre e só ele fala da lamentação das
mulheres no caminho do Calvário e da descrença dos discípulos na palavra das mulheres.
As Comunidades Apostólicas
Na tradição judaica a mulher era inferior e submissa ao homem. No mundo gentio, de onde nos veio o
Evangelho segundo Lucas a situação da mulher era melhor do que no mundo judeu. Havia, inclusive,
um movimento de emancipação feminina que chegava a causar estranheza ao próprio apóstolo Paulo.
Mas em Filipos ele se hospedou na casa de Lídia e aí tinha colaboradoras. Em Corinto,
uma comunidade se reunia na casa de uma mulher chamada Cloé, outra comunidade, tinha uma
ministra ou diácona chamada Febe. Além dessas, muitas outras são citadas, o mais das vezes
antes dos maridos, no capítulo final da carta aos Romanos.
Por isso tudo, a valorização da mulher veio a fazer parte importante no Evangelho escrito nessas comunidades.
As comunidades de hoje
A diferença de gênero (masculino ou feminino) ainda pesa em diversas circunstâncias na Igreja e no mundo de hoje.
Há, entretanto, um esforço, até escrupuloso, para se superar isso. Onde, por exemplo, se dizia apenas "irmãos",
hoje se diz "irmãos e irmãs". Na prática, porém, a mulher ainda tem motivos para se sentir discriminada.
Muitas reivindicam a ordenação sacerdotal. Antes disso, porém, é preciso que as mulheres possam influir nas
decisões, que nunca devem ser solitárias, machistas e autocráticas, "aqui eu é que mando!". Só a mulher, com
sua sensibilidade e intuição, é capaz de mostrar o que o homem geralmente não vê. Só ela é capaz de impedir
que muitos e muitos erros se cometam.
12) O EVANGELHO DOS DE FORA
Janela
A genealogia ou relação dos ancestrais de Jesus no Evangelho de Mateus vai de
Jesus até Abraão. Lucas começa em Jesus e vai até Adão. Para ele o importante não é
Jesus ser filho de Abraão, é ser filho de Adão e de Deus, é pertencer à humanidade
inteira. Em Nazaré, sua terra,Jesus lembra que pessoas de fora, não as de casa, foram
beneficiadas por Deus. O centurião ou sargento do exército romano, um não judeu que
quer uma cura, não vai a Jesus como em Mateus, manda que outros peçam a cura que
ele deseja, de tal modo sentia-se indigno. Além disso, todos o elogiam bastante.
Quando quer dar exemplo de alguém que se preocupa com o ser humano ferido,
roubado e caído à beira do caminho, Jesus escolhe não o sacerdote ou o levita, mas o
samaritano, alguém de fora e considerado inimigo. Quando cura dez leprosos, só o
samaritano, o de fora, volta para agradecer.
As Comunidades Apostólicas
Paulo, o iniciador das comunidades de onde nos veio este Evangelho era um
fariseu "zeloso das tradições paternas", mas quando reconhece que Jesus é mesmo o
Messias enviado por Deus, sai logo pregando a Boa Notícia para os não judeus. De um
judeu fechado sobre si mesmo, ele se transformou em missionário dos de fora.
A Boa Notícia não é só para os judeus, é para todas as nações. É no meio delas
que ele vai fundar novas comunidades cristãs. Os gentios eram considerados pecadores,
mas Paulo diz que não, que todos, judeus e não judeus, são pecadores e todos podem
viver a mensagem de Jesus. Assim é que o Evangelho escrito no meio dessas
comunidades vê com simpatia os samaritanos e todos os não judeus.
As comunidades de hoje
A tentação de achar que somos santos e os outros são pecadores também nos
atinge hoje. Desconfio muito quando alguém reza "pela conversão dos pecadores". Um
rigorismo exagerado, que não é raro de se ver, pode fazer com que alguns se sintam os
justos, colocando os outros na categoria de pecadores. Dentro de um grupo, esse
rigorismo leva a uma fiscalização mútua e pode criar também grandes hipócritas.
Hoje, isso tudo não tem cabimento. É preciso reconhecer que há não cristãos e
ateus que vivem a verdadeira mensagem de Jesus melhor do que muitos de nós. E
também é preciso reconhecer os imensos valores que se encontram em todas as
religiões.
13) O EVANGELHO DOS PECADORES
Janela
O perdão talvez seja uma das características mais notáveis no Evangelho
segundo Lucas. Só segundo ele João Batista dá orientação para os "pecadores" soldados
e publicanos. A primeira fala de Simão Pedro é reconhecer-se pecador. Só em Lucas
temos o episódio da pecadora que chora aos pés de Jesus, o da crítica a ele por
freqüentar pecadores, as parábolas da ovelha e da moeda perdida, do filho pródigo e da
oração do fariseu e do publicano.
O conflito de Jesus com os fariseus acontece porque os fariseus se consideravam
justos e desprezavam os pecadores. Só em Lucas Jesus pede perdão para aqueles que o
crucificam e perdoa um dos criminosos crucificados com ele.
As Comunidades Apostólicas
Os gentios ou não judeus, de onde nos veio este Evangelho, eram considerados
pecadores. Mas acolheram a palavra de Deus com muita firmeza e muita alegria, no
meio de dificuldades e perseguições, uns tornando-se modelo e incentivo para os outros.
Não se consideravam justos, pois todos somos pecadores, como diz Paulo na carta aos
Gálatas, e por todos Jesus se entregou a fim de nos libertar deste mundo mau.
Na carta aos Romanos ele diz logo no início que todos somos pecadores e no
capítulo 7 fala da angústia interna da pessoa que faz o que não queria, age como não
gostaria. Mas nenhuma condenação há agora, termina ele no início do capítulo 8, para
aqueles que estão em Cristo. O Evangelho dos pecadores só poderia nascer no meio de
comunidades assim orientadas.
As comunidades de hoje
A mentalidade e o espírito de competição que predominam no mundo de hoje
tendem a nos levar a pensar que somos ou devemos ser impecáveis. E, quando não
admitimos que somos pecadores ou não aceitamos nossas próprias limitações, está
aberto o caminho para a depressão, a grande epidemia de hoje.
A condenação, pior ainda se for a condenação de si mesmo, não salva. Só o
perdão salva. E eu mesmo sou a primeira pessoa que me devo perdoar, que devo
desculpar minhas falhas, reconhecer na prática as minhas limitações. A cobrança
exagerada condena. Jesus não veio premiar os justos, veio salvar os pecadores. Se eu
sou justo, não sou pecador, já não preciso dele. Quando me reconheço fraco, então
encontro nele a força.
14) O EVANGELHO DOS APÓSTOLOS
Janela
A palavra Apóstolo é bem mais frequente em Lucas do que nos outros
Evangelhos. É Jesus quem dá aos doze o nome de Apóstolos. Nenhuma crítica é
atribuída a eles. Baste uma comparação: Em Marcos dois deles (Tiago e João)
interrompem a fala de Jesus sobre a paixão para pedir os primeiros lugares e os outros
dez ficam com ciúmes dos dois. Em Mateus é a mãe de Tiago e João que pede os
primeiros lugares para os filhos. Lucas nem traz o episódio. Várias vezes no seu
Evangelho os Apóstolos se reúnem com Jesus. No livro dos Atos dos Apóstolos, do
mesmo Lucas, tudo na Igreja primitiva passava pelos Apóstolos, eles tinham todas as
iniciativas.
As Comunidades Apostólicas
As comunidades que nos deram este Evangelho tinham forte experiência da
presença de da importância dos Apóstolos. Mas havia também problemas. Mais de uma
vez houve dúvidas se Paulo poderia ou não ser chamado Apóstolo e, quando escreve a
comunidades onde isso acontecia, ele sempre se apresenta como tal. Em Corinto, o
espírito de competição fazia com que se formassem torcidas ou fã-clubes em torno dos
nomes dos missionários ou apóstolos. Paulo responde que ele, Pedro, Apolo ou qualquer
outro não são donos, pertencem ao povo. Mas dez anos depois deste Evangelho, havia
em Corinto quem não aceitasse os dirigentes, o que motivou a carta de Clemente
Romano aos cristãos dessa cidade. O destaque que Lucas dá aos Apóstolos faz pensar
que, quando o Evangelho foi escrito, o problema já começava a aparecer.
As comunidades de hoje
Treinou bastante tiro ao alvo. Já não errava mais. Armou um tripé onde fixou a
arma e foi atirando. Não era preciso mais olhar, era só pôr a munição e atirar. Acontece
que o alvo mudou de lugar e ele ficou atirando a esmo.
O problema nosso hoje é saber onde está o alvo. Atiradores há muitos, o tiroteio
é intenso, só não se sabe se está atingindo o alvo. Para isso é preciso haver os
Apóstolos, as autoridades na Igreja, nas nossas comunidades. Não para mandar e
desmandar como os poderosos do nosso mundo, mas para nos levar a descobrir juntos
onde está o alvo, onde queremos chegar, o que é mais necessário aqui e hoje, para
concentrar aí todas as forças existentes, gastar toda a munição disponível, todos
atingirem o mesmo alvo.
15) JERUSALÉM , A REFERÊNCIA.
Janela
O Evangelho de Lucas começa e termina no Templo de Jerusalém. Começa com
Zacarias vendo o Anjo Gabriel no lugar mais sagrado do Templo, e termina com os
discípulos frequentado o Templo para louvar a Deus.
Com quarenta dias Jesus é apresentando no Templo de Jerusalém e aos doze
anos, como todo fiel judeu, vai à festa e lá fica sem que o saibam seus pais. Lucas
inverte a ordem das tentações que se encontra em Mateus e coloca a última em
Jerusalém, para dar a entender que foi aí que Jesus começou sua missão. Na subida para
Jerusalém coloca as falas e episódios mais importantes do Evangelho. E em muitas
outras passagens Jerusalém ganha sempre forte destaque.
As Comunidades Apostólicas
Paulo teve problemas em suas comunidades por causa de pessoas que vinham de
Jerusalém tentando obrigar os não judeus a entrarem para a religião judaica antes de se
tornarem cristãos. Há alguns que, por isso, começavam a adotar os costumes judeus,
Paulo disse que estavam abandonando Jesus Cristo e tornando inútil a sua morte.
Compara Jerusalém com Agar, a escrava de Abraão e diz: "A Jerusalém atual é escrava
com seus filhos".
Por isso, as comunidades de Paulo ficaram com fama de negar totalmente a
religião judaica e até de obrigar os cristãos judeus a deixarem seus antigos costumes (At
21,21).
O cristianismo nasceu do judaísmo, não poderia "cuspir no prato em que
comeu", ignorar a antiga fé de onde nasceu. O Evangelho que brotou nessas
comunidades tinha que desfazer essa impressão, devia mostrar que tudo começa e
termina em Jerusalém e que Jesus foi o judeu mais fiel à antiga Lei.
As comunidades de hoje
Por longo período da história do Brasil a religião do povo, religião de "muita
reza e pouca missa, muito santo e pouco padre" sustentou a fé católica. Depois veio uma
forte reação e diziam: "a ignorância religiosa é o maior mal do Brasil". Antigos
costumes foram classificados como superstição e algumas manifestações religiosas que
sobreviveram passaram à categoria de folclore.
Hoje precisamos redescobrir os valores que se encontram na "religiosidade
popular" e nessas manifestações, precisamos ver aí cultura, um jeito de buscar Deus e
rezar, do qual muito podemos aprender, sem transformá-las em folclore ou museu vivo.
16) A PECADORA DA CIDADE.
Janela
Só Lucas (7,36-50) tem este episódio. Um homem fariseu chamado Simão pede
que Jesus venha almoçar na sua casa. Uma mulher, conhecida pecadora da cidade, vai lá
levando um recipiente de perfume, coloca-se aos pés de Jesus, molha-lhe os pés com
lágrimas, enxuga-os com os cabelos e os perfuma. O fariseu suspeita de Jesus, ele não
deve ser o profeta que dizem, não sabe que é uma pecadora que está tocando nele. E o
toque do impuro faz que o outro se torne impuro. Mas, com uma comparação, Jesus
mostra que a mulher, sem nome, mas pecadora conhecida, fez melhor do que o Sr.
Simão, fariseu sem mancha.
As Comunidades Apostólicas
As comunidades onde brotou este Evangelho eram de gentios, considerados
pecadores, como diz Paulo na Carta aos Gálatas (2,15). Mas os judeus também devem
se considerar pecadores, como diz o mesmo Paulo nos primeiros capítulos da Carta aos
Romanos. E Cristo morreu pelos pecadores (Rm 5,6-8).
Segundo alguns rabinos, seria melhor queimar a Bíblia do que deixar que uma
mulher a lesse. Agora acabaram as diferenças (Gl 3,23), mulher agora tem valor.
Só nessas comunidades mulher e pecadores merecem tanto destaque. Nos outros
Evangelhos uma mulher também perfuma a cabeça ou os pés de Jesus. Só em Lucas,
porém, essa mulher é pecadora conhecida na cidade, chora aos pés de Jesus e ele a
compara com o senhor fariseu de nome e prestígio que o convidou para almoçar.
As comunidades de hoje
Será que hoje ainda existem entre nós preconceitos de posição social, origem
étnica, ou gênero? E quando se trata de mulher, negra e pobre? Mãe solteira ainda não
carrega sozinha o filho, o pecado e a humilhação do pai solteiro ou adúltero, que
permanece com seu nome e prestígio intocados? O Sr. Simão continua sendo o Sr.
Simão e a mulher é a pecadora sem nome, conhecida na cidade.
E quantas vezes o episódio do Evangelho refere-se aos pés de Jesus? Os pés de
Jesus são os pobres e os sofredores deste mundo. A pecadora lava, enxuga e perfuma os
pés de Jesus. Uma novela da televisão ainda em preto e branco, "Saramandaia", ilustrou
isso. Um personagem se transformava em lobisomem nas noites de lua cheia. Sofria
muito com isso. A atenção, dedicação e carinho de uma prostituta é que o libertaram
daquele peso.
17) OS SETENTA E DOIS.
Janela
Logo no início da Subida (para Jerusalém, para a cruz, para Deus), o trecho mais
importante do Evangelho de Lucas, Jesus envia setenta e dois discípulos, dois a dois,
para todo lugar aonde ele mesmo devia ir. Antes já havia enviado os Apóstolos. Há aí
algumas curiosidades: por que setenta e dois? Por que dois a dois? Cada dupla
preparava a chegada de Jesus a um lugar, ele ia a 36 lugares ao mesmo tempo? 72 mais
12 completam sete dúzias. Sete ou setenta era o número simbólico das nações. Indo dois
a dois, um ajuda e completa o outro e ninguém se sente dono da verdade toda. O
episódio é muito mais espelho do que acontecia nas comunidades do que uma janela
para o passado.
As Comunidades Apostólicas
Paulo, como ele mesmo diz (Gl 1,16-17) não pediu licença aos Apóstolos para
sair levando a boa nova de Jesus, o messias crucificado. As comunidades cristãs no
mundo gentio começaram a partir dos missionários leigos efoi assim que o cristianismo
se espalhou pelo mundo. Não foi um dos Apóstolos que levou a fé para Roma, foram
leigos, judeus que costumavam ir à Palestina.
Os Atos dos Apóstolos e as cartas de Paulo falam de grande número de
missionários leigos, Timóteo, Silvano, Áquila e Priscila, Sóstenes e muitos outros.
Além disso, sempre vão pelo menos dois a dois. Paulo, mesmo quando escreve
as cartas, nunca está sozinho, não o faz só em seu nome, mas no nome de um ou mais
companheiros também.
As comunidades de hoje
Que seria de nossa Igreja se não fossem vocês, os setenta e dois? O cristão é um
missionário. Começa em casa, ensinando bons costumes e práticas religiosas aos filhos.
Mais do que outra coisa é esse passar a fé de uns para outros, que sustenta os fiéis na
Igreja.
Hoje a influência dos meios de comunicação vai crescendo e a tradição familiar
perde forças. Que se pode esperar para o futuro?
A Igreja do Brasil já teve lideranças leigas de forte influência como Tristão de
Ataíde. Tivemos também muitos missionários leigos. Hoje, se há, estão apagados. Por
que será? Falta de espaço? Falta de garra? Força do individualismo? Outros tempos?
A Pastoral da Criança é realização dos leigos e está promovendo novos
missionários leigos, podemos esperar um novo alvorecer.
18) O BOM SAMARITANO.
Janela
A parábola só se encontra em Lucas e é resposta de Jesus à pergunta sobre quem é o
próximo, o companheiro a quem se deve amar. Um homem roubado, ferido de morte e
caído à beira do caminho. Dois profissionais do culto divino, o sacerdote e o levita, que
voltavam para casa, fingem não ver. O samaritano, ali considerado sem fé e inimigo, vê,
deixa-se comover, apeia do animal, faz os primeiros curativos, coloca o homem na sua
montaria e leva até uma pensão, onde passa a noite cuidando dele. Dá um dinheiro ao
dono da pensão para que cuide do ferido, prometendo na volta pagar o que for gasto a
mais. Jesus pergunta: "Quem foi companheiro do homem roubado e ferido?" E
acrescenta: "Vá fazer o mesmo!".
As Comunidades Apostólicas
As comunidades deste Evangelho nasceram da experiência de Paulo, fariseu que se
converteu em apóstolo dos pecadores gentios. Ele conhecia todas as leis dos fariseus e
era o mais observante. "O que para mim era lucro " disse ele " agora é prejuízo. Perdi
tudo, mas considero tudo aquilo como lixo."
Mas nessas comunidades alguns tinham vontade de valorizar as antigas normas e leis.
Paulo, porém, tinha dito (Gl 5,14): "Toda a lei se resume neste único mandamento
"Amarás o teu próximo como a ti mesmo!".
O homem roubado e ferido de morte é a humanidade sofredora, à margem. O
sacerdote e o levita, estão descendo, terminaram a sua função no Templo e voltam para
casa, mesmo assim, estão mais preocupados com a impureza que poderiam contrair se
tocassem num morto. O samaritano são os gentios "pecadores", para eles Paulo disse
não precisar insistir no mandamento do amor (1Ts 4,9).
As comunidades de hoje
Hoje não existe rezar para não ver os problemas. Ou existe? A multiplicação de leis e
normas religiosas, a proliferação de ocasiões de pecado, favorece fortemente o fazer de
conta que não se vêem os sofrimentos humanos. O sacerdote e o levita, profissionais do
culto, preocupados com a impureza legal, representam muito bem isso.
É de se notar que o fato não aconteceu, foi inventado. Os personagens foram escolhidos
por causa daquilo que representavam. Por que será que Jesus, inventando essa estória,
para representar quem não olha para o sofrimento alheio, escolheu o sacerdote e o
levita?
19)MARTA E MARIA.
Janela
Na sua subida (para Jerusalém, para a cruz, para Deus) Jesus entra em um povoado e se
hospeda em casa de Marta. É a dona de casa preocupada com a casa e com o que vai
servir aos hóspedes. Não pára um momento, a não ser para pedir a Jesus que mande sua
irmã Maria, que está "sentada aos pés de Jesus, ouvindo-o", ir ajudá-la nos afazeres.
Jesus lhe responde "Marta, Marta, você está preocupada com muita coisa! Uma só
basta. Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada."
As Comunidades Apostólicas
Depois que Paulo anunciou a ressurreição do crucificado àqueles gentios que não
praticavam as obras de lei judaica, vieram outras pessoas dizendo que era necessário
praticá-las.
Na Bíblia, além dos dez mandamentos, há longas legislações cultuais e de
pureza ritual e para os fariseus ainda havia mais 603 mandamentos só transmitidos
oralmente. Era um emaranhado para deixar qualquer Marta louca.
Uma só coisa é necessária. Paulo lembra a essas comunidades "Toda a lei se
resume neste único mandamento: Amarás o teu próximo como a ti mesmo". Para
entender bem o único necessário é preciso sentar-se aos pés de Jesus e escutá-lo.
As comunidades de hoje
A multidão de práticas e de ocasiões de pecado pode nos deixar desorientados
como Marta, sem saber o que mais fazer para agradar Jesus. Ela se parece com quem se
preocupa com muitas práticas, devoções e temores de pecar, pensando assim agradar a
Deus.
Pelo caminho da Lei está tudo pronto, tudo marcado, tudo previsto, não há
surpresas, novas descobertas, novas perguntas, novos desafios. Basta cumprir a Lei e
estamos salvos. O caminho da Lei é como trilhos do trem de ferro. Basta não sair dos
trilhos, chega-se ao destino.
Sentar-se aos pés de Jesus e escutá-lo. Essa é a melhor parte. Não basta
dispensar os trilhos. Precisamos estar de antenas ligadas para saber o caminho. E quem
nos fala é Jesus. "Onde há o espírito de Jesus Cristo aí há a liberdade" (2Cor 3,17).
Ligar a antena para entender o momento e saber o que me pede agora o
mandamento único. Na cruz ele nos mostra o que é amar o próximo. A cada momento
perguntar-se: Se ele estivesse no meu lugar, que faria agora? Isso será sentar-se aos pés
de Jesus e ouvi-lo.
20)COMO CONSTRUIR UMA TORRE.
Janela
Jesus está subindo (para Jerusalém, para a cruz, para Deus) e grandes multidões querem acompanhá-lo.
Ele se volta para elas e diz: "Quem não deixa tudo, a própria família e até mesmo a vida, quem não
carrega a sua cruz e não caminha atrás de mim, não pode ser meu discípulo." E faz as comparações da
torre e da guerra.
Quem vai construir, primeiro se senta para ver se tem como terminar. Se não tem, não começa.
Quem vai para a guerra, primeiro examina se pode vencer, se não pode, pede a paz.
"Assim " termina Jesus " quem não deixa tudo não pode ser meu discípulo."
As Comunidades Apostólicas
As comunidades que nos deram este Evangelho estavam nas grandes cidades de tradição grega
ou romana do Império. O sonho aí era ter prestígio e riqueza e gozar a vida.
Corinto, por exemplo, com seus dois portos, um dando para o oriente e outro para o ocidente,
era uma esquina do mundo. Ali corria dinheiro e muito trabalho escravo. No templo de Afrodite
atuavam mil prostitutas sagradas, as festas de Dionísio eram de bebida e farra. As religiões
idolátricas tornavam tudo sagrado.
O Jesus que se ia apresentar para as multidões desses lugares tinha mesmo que dizer "deixa
tudo ou não queiras ser discípulo". Não é possível "fazer uma média".
As comunidades de hoje
O símbolo do domínio português no Brasil foi a cruz. Mas a primeira coisa que os reis católicos
fizeram no Brasil, além de se apropriar do território que já tinha donos, foi usar o trabalho
escravo, dos índios e, depois, dos negros.
Os índios que se deixavam batizar, deixavam-se escravizar. Os negros, querendo ou não, eram batizados
antes de desembarcarem. O batismo tornava tudo sagrado. Se em Corinto havia a prostituição sagrada,
aqui havia a escravidão sagrada.
A cruz era anunciada aos escravos para fazê-los se conformar, aceitar os sofrimentos que lhes impunham.
Isso ainda está na cabeça de muita gente: "Jesus sofreu, nós também temos que sofrer".
Cruz não é sofrimento imposto, é luta assumida. Cruz é dar a vida em favor do outro, sacrificar-se em
benefício da vida, assumir a pobreza e a humildade para que todos cresçam. Não basta carregar a cruz,
é preciso ir pelo mesmo caminho de Jesus, até a vitória da vida, a ressurreição.
21) OS DOIS FILHOS.
Janela
Criticam Jesus, que convive e até toma alimento com gente "pecadora". Ele responde
com a parábola dos dois filhos.
O mais moço pede a sua parte na herança e sai pelo mundo a gozar e gastar. O
outro fica "servindo o pai". O mais moço vai longe, até onde se criam porcos. Mas
acaba disputando comida com eles (Jesus também comia com os "impuros"). Cai em si
e resolve voltar e pedir ao pai um emprego. O pai, que o esperava, acolhe-o com festa,
como filho. O mais velho não estava em casa, estava "servindo o pai", e não quer entrar
na festa "daquele sujo".
As Comunidades Apostólicas
A parábola reflete bem uma das principais questões vividas nas comunidades
deixadas por Paulo, a da observância ou não da Lei, especialmente nas suas inúmeras
regras de pureza legal.
Naquelas comunidades Jesus está em companhia de pecadores, pois todos são
gentios, pelos fariseus taxados de pecadores. Até come com eles. Em Antioquia Pedro
fazia isso, participava da Ceia com cristãos não judeus. Mas quando chegam de
Jerusalém emissários de Tiago, que proibia essa promiscuidade, afasta-se com receio,
mas Paulo chama-lhe a atenção (Gl 2,11-14).
Na parábola, o irmão mais velho são aqueles que procuram "servir o pai"
seguindo todos os ditames da Lei judaica e o irmão mais moço são os cristãos gentios,
pecadores, acolhidos como verdadeiros filhos, apesar da má vontade de muitos cristãos
judeus, os irmãos mais velhos.
As comunidades de hoje
Hoje a parábola ensina que a misericórdia deve derrotar o julgamento e a
condenação. O Pai é capaz de acolher como filho aquele que "os puros observantes da
Lei" condenam como pecadores. O Pai é capaz de acolher como filho aquele que os "já
salvos" consideram condenados.
A falta de misericórdia é o grande mal, e é conseqüência daquilo que hoje
governa o mundo. Banqueiro e especulador não têm coração, o lucro não dá o menor
espaço para a misericórdia e a compaixão. Quanto mais o dinheiro domina, mais a
misericórdia se afasta.
Há ainda a força do pensamento único, quem não concorda é sumariamente
achincalhado. No ambiente religioso também, frequentemente quem quer parecer
correto é apenas intransigente, condena tudo o que não corresponde ao próprio
pensamento. Mas o Pai ensina e exige misericórdia.
22)O ADMINISTRADOR ESPERTO.
Janela
O Evangelho de Lucas traz, só ele, uma parábola difícil de entender. É a do
administrador esperto, mas desonesto, como está em algumas Bíblias.
Um administrador foi denunciado ao seu rico patrão de estar dilapidando suas
propriedades. Certo de que seria despedido, passou a agradar os devedores do patrão,
alterando as notas e diminuindo suas dívidas. Pensava: quando eu for despedido do
emprego terei pessoas que me acolham. E o senhor (Jesus ou o patrão?) elogiou a
esperteza do administrador desonesto. E Jesus continua: Vocês também façam amigos
com o dinheiro injusto para que, quando ele acabar, eles os recebam na moradia eterna.
As Comunidades Apostólicas
As pessoas das comunidades de Lucas eram pobres, mas talvez não tão pobres como as
das comunidades da Judéia. Paulo promoveu entre elas uma campanha em favor das
comunidades de Jerusalém e arredores (a Judéia). As mais pobres contribuíram com
mais generosidade (2Cor 8,1-2).
Mas havia ricos e pessoas importantes dentro das comunidades. Algumas vezes
chegavam a desprezar e humilhar os mais pobres. É o que acontecia em Corinto dentro
da própria celebração da Ceia do Senhor.
Os ricos deviam ser alertados e os mais pobres elogiados pelo uso que faziam dos bens
que Deus, o verdadeiro patrão, punha em suas mãos. Repartir com os mais pobres a
riqueza de que eram administradores temporários era santa esperteza, pois assim
garantiriam a própria salvação.
As comunidades de hoje
A dificuldade em entender a parábola de Jesus é causada pelo valor que se dá hoje ao
dinheiro, à propriedade. A propriedade é intocável, o dinheiro se conta aos centavos,
isso é considerado valor. O nome, a honra, o equilíbrio emocional, a harmonia, a
felicidade, isso nem é considerado valor. Isso não se conta nem se registra em cartório.
Impressiona o elogio daquele empregado que lesou o patrão. Onde já se viu o
empregado lesar o patrão?! Isso repugna à nossa arraigada formação mercantilista e
escravagista!
Deus é um patrão diferente. Ele quer que os bens que nos confiou para
administrar sejam repartidos, sejam dilapidados. A ele o que interessa é o social, não o
econômico, é o partilhar, não o acumular.
23)LÁZARO E O RICO.
Janela
O Evangelho segundo Lucas, só ele, tem a parábola do pobre Lázaro e o rico
banqueteador. A parábola está também na subida de Jesus (16,19-31).
O rico sem nome vestia-se elegantemente e dava banquetes todos os dias. O
pobre, de nome Lázaro (significa Deus ajuda), cheio de feridas, ficava sentado no chão
à porta do rico, esperando as migalhas que lhe caiam da mesa. Nada lhe davam, só os
cachorros, solidários, vinham lamber-lhe as feridas.
Morrem. Lázaro é levado para o banquete da vida e o rico, para debaixo da terra.
Ele pede ao Pai Abraão a ajuda de Lázaro. Abraão lembra o abismo que os separa. Ele
pede que Lázaro possa aparecer aos seus parentes. A história termina com a resposta:
“Já têm a Bíblia. Se não a seguem, nem que um morto ressuscite, irão mudar de vida”.
As Comunidades Apostólicas
O abismo entre pobres e ricos estava presente também nas comunidades que nos
deram este Evangelho.
Em Corinto temos o caso da Ceia do Senhor (1Cor 11,17-34). A celebração da
eucaristia acontecia na partilha de uma refeição comum. Os poucos ricos levavam
muitas comidas e bebidas finas, mas comiam tudo antes de chegarem os pobres, a
maioria da comunidade. Quando esses chegavam, os ricos já estavam empanturrados e
embriagados, e os pobres com fome.
Paulo lembra o significado da eucaristia: Jesus dá seu corpo a partilhar. É um
absurdo fazer o contrário. A eucaristia condena o abismo entre ricos e pobres. Quando
na celebração da partilha reproduzem esse abismo, estão comendo a própria
condenação.
A parábola do Evangelho faz eco a essa situação.
As comunidades de hoje
O Papa Paulo VI já trazia a parábola do pobre Lázaro e do rico banqueteador
para a realidade do abismo entre nações pobres e ricas hoje. Chamava a atenção das
ricas para que se preocupassem mais com as pobres. Mas a África continua esquecida,
morrendo de fome e de Aids e outras epidemias.
Pense na facilidade com que se fala em milhões de reais quando se descobrem
desvios do dinheiro público e compare com a situação de um morador de rua e meça a
distância.
E a ostentação nas missas, batizados, casamentos, não quer exatamente destacar
a diferença, a distancia, o abismo? Não será também celebrar a própria condenação?
24)O FARISEU E O PUBLICANO.
Janela
É bem conhecida e característica do Evangelho segundo Lucas a oração do fariseu e do
publicano. O fariseu, homem piedoso e observante, reza de pé, cabeça erguida,
agradecendo a Deus por ser justo, correto e praticante escrupuloso de tudo o que é Lei
de Deus, diferente do publicano que lhe está atrás, pecador.
O publicano, vivia da cobrança terceirizada de impostos, necessitado, quase, de cobrar
acima da tabela. Sabedor de que sua profissão o tornava sujo e odioso, mal entra no
templo e, cabeça baixa, bate no peito, pedindo perdão por ser um pecador.
Este saiu em paz, o primeiro, do mesmo tamanho.
As Comunidades Apostólicas
As comunidades que nos deram este Evangelho, já sabemos, eram de gentios,
considerados pecadores pelo que havia de mais preconceituoso no judaísmo. O fariseu
representa exatamente a auto-suficiência e o preconceito de que eram vítimas os cristãos
dessas comunidades.
Paulo já havia mostrado o contraste entre a observância da Lei e a vivência da Fé. A
ideologia da Lei transformava tudo em listas de pecados a evitar e rituais,
principalmente rituais, a cumprir. Era uma escravidão. A Fé é liberdade, é espírito, é
compromisso radical com Jesus, que ajuda a descobrir os caminhos do amor e não
escravidão que coloca em trilhos dos quais não se pode sair.
Essa liberdade deixa-os enlameados de pecado. Ninguém faz tudo o que deveria fazer.
Paulo já falara disso no capítulo 7 da carta aos Romanos. O publicano é o cristão gentio,
pecador declarado.
As comunidades de hoje
Para ir à busca de Deus é preciso estar com os pés bem apoiados na realidade do
pecado em que vivemos. Não é sem sentido que, na mais antiga tradição da meditação
cristã, a oração do fariseu: “Tem piedade de mim, pecador!” já era um estribilho, que os
hindus chamam de mantra, para introduzir à oração integradora.
Oração espetáculo, oração de exibição, oração para tentar convencer a mim
mesmo e, quem sabe, aos outros que sou justo e respeitável, ostentação religiosa, nada
disso pacifica e põe em comunhão com Deus. Deixa do mesmo tamanho, senão pior.
Oração é reconhecer-se pecador e derramar sobre si o perfume de Deus para
banhar-se dele, sorvê-lo e cheirá-lo, para, então, cheirar a Deus.
25)O RICO QUE SE SALVA.
Janela
O Evangelho de Lucas, já falamos, se interessa muito pelos ricos. E traz o episódio de um rico que se salva.
Zaqueu, empresário de cobrança dos impostos terceirizados pelo Império, baixinho, não conseguia ver Jesus que, indo para Jerusalém, passava por Jericó. Subiu, então, a uma árvore. Jesus o chama pelo nome e diz que desça logo, “porque hoje devo ficar na tua casa”.
Todos criticam Jesus, que vai para a casa de um pecador. Mas Zaqueu, de pé, decide restituir o que defraudou e partilhar o que lhe restasse. E Jesus: “Hoje a salvação entrou nesta casa, porque este também é filho de Abraão”.
As Comunidades Apostólicas
Os membros das comunidades deste Evangelho não eram “filhos de Abraão” pelo sangue, eram gentios, não judeus. Viviam nas grandes cidades fundadas pelos imperadores para manter o seu sistema. Alguns queriam que eles se tornassem judeus pela Lei antes de se tornarem cristãos. Paulo lutou contra isso. Para ele, pela fé em Jesus Cristo todos são filhos de Abraão.
Eles não eram tão pobres como os cristãos da Palestina. Havia até mesmo alguns altos funcionários do Império e ricos, certamente, como certo Erasto, de Corinto. Nascia o preconceito contra os cristãos gentios das ricas metrópoles.
Aí se encaixa o episódio do rico, pequeno, que faz tudo para ver Jesus e, quando o acolhe em sua casa, quando começa a reunir uma comunidade cristã, muda de vida e passa a ser justo e solidário.
As comunidades de hoje
A força do dinheiro freqüentemente fala mais alto do que tudo. Muitos Zaqueus, pequeninos, continuam no chão, sem ver Jesus, sem hospedá-lo em sua casa, sem desfazer as injustiças, sem se tornar solidários e sem ver a salvação chegar. “É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha”.
O rico pequenino não entra para a comunidade, não vê Jesus, não encontra o caminho da salvação? O dinheiro é um obstáculo intransponível? É um deus falso que não deixa ver o verdadeiro Deus, pai de Jesus Cristo? Não! Aí está Zaqueu, o “puro”, que saiu de sua pequenez subindo ao sicômoro, viu Jesus, hospedou-o na sua casa, tornou-se justo e solidário e, assim, encontrou o caminho da salvação.
O problema é que quanto maior a força do dinheiro, mais longe ficam a justiça e a solidariedade. E a salvação.
26) A PAIXÃO DE LUCAS.
Janela
A vitória do fracassado, o crucificado que está vivo, foi o tema central da primeira
pregação do cristianismo. Nem por isso, a narrativa da paixão de Jesus deixa de
encontrar diferenças nos Evangelhos.
Lucas é mais sóbrio, Jesus não é tão humilhado como em Marcos e Mateus. Na ceia
Jesus diz: “Os reis da terra..., entre vós não há de ser assim”. No momento da prisão
cura a orelha cortada do servo do sumo sacerdote. Só Lucas fala do olhar de Jesus para
Pedro, que acabara de negá-lo pela terceira vez. Só neste Evangelho Jesus é levado a
Herodes e faz com que ele e Pilatos façam as pazes. Um grupo de mulheres chora por
Jesus e ele responde que devem chorar não por ele, mas por elas mesmas e seus filhos.
Só em Lucas Jesus pede perdão para os seus algozes. Só em Lucas Jesus promete o
paraíso a um dos criminosos crucificados com ele.
As Comunidades Apostólicas
A importância da ressurreição nas comunidades que nos deram este Evangelho (veja
cap.15 de 1Cor) certamente fez o Senhor Jesus de Lucas menos humilhado na sua
paixão.
Paulo, nos dois primeiros capítulos de 1Cor, mostra a coerência de sua pregação
com o Salvador crucificado. Essa mesma coerência deve ensinar os ministros do
evangelho a não imitarem os reis deste mundo.
Nas metrópoles do Império as autoridades civis têm grande importância. Jesus é motivo
de reconciliação entre Herodes e Pilatos.
As mulheres tinham grande importância nessas comunidades, mas as de Jerusalém
devem chorar não por Jesus, mas por si mesmas e por seus filhos, pois está chegando a
destruição da cidade.
A misericórdia para com o pecador, característica das comunidades paulinas, aparece
também na paixão de Lucas.
As comunidades de hoje
A resposta de Jesus às mulheres que choravam por ele pode resumir bem a principal
mensagem para hoje da paixão segundo Lucas: “Não chorem por mim, chorem por
vocês mesmas e por seus filhos”.
A Semana Santa ganhou no Brasil a característica de compaixão pelos
sofrimentos de Jesus. Mas Jesus não é uma vítima, um coitado. Ele está sereno, seguro,
perdoa quem o crucifica e quem é crucificado com ele. O que merece nossas lágrimas é
a situação em que vivemos e o mundo que estamos deixando para nossos sucessores.
27) OS DISCÍPULOS DE EMAÚS.
Janela
Um dos mais belos episódios do Evangelho de Lucas é o dos discípulos de Emaús
(24,13-35). Ele o construiu em forma de um sanduíche que teria dois pedaços de pão,
duas folhas de alface, duas fatias de tomate, duas de queijo e, no centro, a carne. Seria
assim:
Pão – Afastam-se de Jerusalém.
Alface – Jesus caminha com eles.
Tomate – Eles não reconhecem Jesus.
Queijo – Jesus lhes explica os fatos à luz das Escrituras.
Carne – Dizem “Fica com a gente!” e Jesus entrou para ficar com eles.
Queijo – Jesus parte e entrega o pão (dizendo “sou eu que me entrego”).
Tomate – Eles reconhecem Jesus.
Alface – Dizem “No caminho nosso coração pegava fogo quando ele nos explicava as
Escrituras”.
Pão – Voltam para Jerusalém.
As Comunidades Apostólicas
“Se o Cristo não ressuscitou nada vale a nossa fé” já dizia Paulo às comunidades de
Corinto. “Algumas mulheres andaram dizendo coisas, mas...”. Eles não estavam
acreditando, por isso abandonavam a comunidade.
Não estão vendo, mas ele está vivo e está junto. Estar em (com) Cristo para
Paulo significa estar na comunidade.
As Escrituras falam de um Messias sofredor, falam do que aconteceu com Jesus,
segundo as Escrituras (1Cor 15,3).
Quando Paulo (1Cor 11,24-26) lembra os gestos de Jesus na Última Ceia, está
chamando a atenção para alguns que desprezavam e humilhavam os outros na própria
celebração da Ceia do Senhor. Não só as Escrituras dizem, Jesus se entrega mesmo à
morte e é preciso fazer o mesmo, sacrificar-se uns pelos outros.
Reconhecendo-o aí, já não é preciso vê-lo, basta retornar para a comunidade,
para o respeito de uns para com os outros.
As comunidades de hoje
Um grande perigo hoje é o do desânimo e a tentação é abandonar tudo. Jesus
está incógnito, mas caminha com a gente e nos explica as Escrituras. Elas devem
alimentar a esperança, mostrando que lutas e sacrifícios valem a pena. A liturgia da
Palavra nas Missas deve sempre mostrar isso.
Como pedimos, ele está no meio de nós. Mais do que explicar os fracassos à luz
das Escrituras, ele assume o fracasso. E no meio de um mundo governado pelo egoísmo,
ele se entrega em partilha, deixa que lhe tiremos pedaços, para vencermos o nosso
egoísmo, certos de que, invisível, ele entrou para ficar conosco.