Como uma pintura de Cândido Portinari, o Evangelho de Marcos diz muita coisa através das histórias que conta. Observe a pintura de Portinari e observe o Evangelho de Marcos.
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1) MARCOS, O INVENTOR DO EVANGELHO.
Janela
Antes de se escreverem os Evangelhos atuais, havia muitos escritos soltos e sem uma ordem, uma
costura dos acontecimentos e das palavras de Jesus. Eram apenas registros por escrito, das coisas que os
Apóstolos e outros companheiros de Jesus contavam. Marcos foi o primeiro a escrever as "Memórias dos
Apóstolos" em ordem, indo de João Batista até a Ressurreição. Deu-lhe o nome de Boa Notícia ou
Evangelho. Foi o primeiro.
As Comunidades Apostólicas
A comunidade de Marcos sabia que era uma boa notícia o fato de Jesus, aquele pobre galileu
crucificado, ser a esperança da humanidade. Uma boa notícia que eles deviam levar para todo o mundo. Na
época, os zelotes estavam tentando tomar o poder dos romanos. Era uma loucura, o início de uma grande
desgraça.
Jesus era o começo de uma coisa nova que deveria chegar ao mundo inteiro. Por isso, Marcos deu ao
seu escrito o título de Evangelho, que quer dizer "boa notícia". Mas o escrito era só um começo, a
continuação é por conta da comunidade. Por isso, ele diz assim: "Início da boa notícia (ou evangelho) de
Jesus o Messias, filho de Deus".
As comunidades de hoje
Será que ainda hoje a história da vida de Jesus chamada Evangelho é apenas o começo da boa
notícia? Como dar continuidade? Será boa notícia esperar a salvação da humanidade de um condenado à
pior das mortes? Pode-se acreditar que uma pessoa condenada pelas autoridades deste mundo tem a ver com
Deus? Será que Deus vai se ligar tanto assim a um condenado? Vai colocar nele a esperança da salvação
para todos? Boa Notícia por quê?
A Boa Notícia ainda não acabou de chegar. Mal começa a se espalhar. Ainda se acredita pouco no
valor do pequeno e das pequenas coisas. Precisamos mostrar que a coisa é diferente. Tentam fazer de Jesus
um rei potente, para esconder que ele foi um condenado pela sociedade. Precisamos dar a boa notícia de que
Deus levanta aquele que o mundo derrubou. Precisamos mostrar o lado escondido, o lado de Deus.
Ainda querem que a gente esqueça os condenados do nosso mundo para aplaudir os corruptos e os
arrogantes. Precisamos mostrar que os condenados à fome e à miséria clamam que está tudo errado. A Boa
Notícia de que Deus está do lado deles ainda está só no começo e precisa ir em frente.
2) FOI ASSIM MESMO OU É SIMBOLO ?
Janela
No Evangelho de Marcos encontramos muitos detalhes difíceis de explicar se os entendemos como
acontecidos tais e quais. Seria possível, por exemplo, quatro pessoas, carregando um doente em uma
padiola, pela escada externa subirem ao terraço e ali abrirem um buraco para descerem a padiola com o
doente? Será, também, que Maria achou que Jesus estava louco? E como é que o cego curado poderá voltar
para casa sem entrar na cidade onde morava?
As Comunidades Apostólicas
Quando o evangelista escreve as memórias dos Apóstolos, ele não está preocupado com a janela, o
que aconteceu tal e qual, mas com o espelho, o que aquilo significa para a comunidade. Ele quer fazer
daqueles episódios um espelho da sua realidade. Ele quer que a sua comunidade se reflita em Jesus, por isso
faz de cada detalhe um símbolo daquilo que precisa dizer. Em Marcos tudo, tudo está cheio de simbolismo.
Os primeiros leitores entenderam, sem dúvida, o que significava, por exemplo, o cego que estava
sentado, pedindo esmolas, à beira do caminho, jogar o manto para trás, dar um pulo e correr até onde estava
Jesus e, depois seguir Jesus pelo caminho. Entenderam o significado dos quatro que carregavam a padiola
com o paralítico. Entendiam que a casa é a comunidade dos discípulos e a cidade é a mentalidade e estrutura
da sociedade em que viviam.
As comunidades de hoje
Nós hoje somos muito influenciados pela mentalidade do mundo científico e técnico. Perdemos o
senso de humor, não sabemos apreciar estórias com sentido duplo ou triplo. Queremos sempre saber se foi
assim mesmo ou não. Parece que somos todos membros de uma CPI ou somos investigadores e estamos
fazendo um inquérito policial. O maior erro do fundamentalismo bíblico, diz o Documento sobre a
interpretação da Bíblia na Igreja Católica, é pensar que a verdade da Bíblia é a verdade histórica científica. E
Bento XVI (Verbum Domini 19) diz que a nossa curiosidade histórica põe Deus fora da Bíblia.
O Evangelho segundo Marcos deve ajudar-nos a superar essa mentalidade. Precisamos nos perguntar
o que cada detalhe pode ter significado quando o Evangelho foi escrito e o que pode significar hoje. Quando
queremos explicar tudo como rigorosamente histórico, esvaziamos a mensagem do Evangelho. Ficamos
discutindo a placa e deixamos de seguir o caminho que ela aponta.
3) MARCOS E OS OUTROS.
Janela
Já vimos que o Evangelho segundo Marcos foi o primeiro a ser escrito tal como se encontra na
Bíblia. Os Evangelhos segundo Mateus e segundo Lucas se parecem muito com o de Marcos, tanto que
podem ser vistos juntos. Por isso os três chamam-se sinópticos. Mateus e Lucas seguem Marcos passo a
passo, quase copiando. Só mudam detalhes ou trocam episódios de lugar. O quarto Evangelho ou Evangelho
segundo João não seguiu Marcos tão de perto e tem diferenças maiores
As Comunidades Apostólicas
As comunidades do tempo dos Apóstolos eram diferentes umas das outras e as diferenças aparecem
nos seus Evangelhos. Mateus, de uma comunidade de cristãos judeus, seguiu a mesma ordem de Marcos,
mudando alguma coisa e acrescentando muitas, pois a sua comunidade precisava de uma forte catequese e
de organização firme e fundamentada. Já Lucas é de uma comunidade de cristãos não judeus e queria
mostrar um Jesus muito sério, mas muito amigo dos pobres, dos que eram excluídos, dos não judeus como
os samaritanos, dos pecadores, das mulheres. Ele muda e tira ou acrescenta o que é necessário para dar o seu
recado.
As comunidades de hoje
Para procurar uma resposta tem de levar uma pergunta, pois quem não sabe o que está procurando
não acha coisa alguma. Antes de ler o Evangelho a gente precisa prestar atenção à vida, ao que está
acontecendo. Como dizia uma pessoa de nossas comunidades, a gente deve ler a Bíblia de olho aberto...
Vamos nos perguntar. De que boas notícias o nosso mundo mais precisa? Quando se fala em
evangelizar, evangelização, estamos pensando em trazer esperança para as pessoas, ou nosso evangelizar é a
má notícia de uma doutrinação maçante, chata, opressiva e moralizante, que só vê pecado por toda a parte?
O nosso evangelizar faz as pessoas se situarem na sua realidade, sentirem-se tranquilas, seguras e
comprometidas com um sonho, ou deixa as pessoas deprimidas, agitadas ou até alucinadas?
Cada Evangelista escreveu pensando nos problemas vividos pela sua comunidade. Nós já pensamos
como o Evangelho pode ser boa notícia, uma saída, uma esperança frente aos problemas do nosso tempo e
do nosso lugar? Sem isso repetimos as palavras e não o espírito dos Evangelhos.
4) QUEM É JESUS?
Janela
O Evangelho de Marcos se resume nessa pergunta. Começa dizendo que é início da Boa Notícia de
Jesus, o Messias, o Filho de Deus. Na Galiléia Jesus sempre proíbe que digam quem ele é. No centro do
Evangelho, pergunta aos discípulos e Pedro responde que ele é o Messias. Sobe para Jerusalém explicando
que é o Messias sofredor, mas os discípulos não entendem e não aceitam a ideia. Logo após sua morte de
cruz, um gentio, um não judeu, o sargento romano, reconhece que ele era mesmo o Filho ou Servo de Deus.
As Comunidades Apostólicas
A comunidade que nos deu este Evangelho viveu num tempo próximo de Jesus. É verdade que já
começava a se organizar e tinha novos dirigentes no lugar dos Apóstolos. Mas não podia esquecer o que lhe
era essencial, era uma comunidade de seguidores de Jesus, o pregador popular que foi crucificado em
Jerusalém. Todos o chamavam de Cristo, que quer dizer ungido, em hebraico, messias. Precisa lembrar o
que isso significa, pois os chefes da revolução que tomou o poder em Jerusalém também se chamavam de
cristo ou messias. Que cristo ou messias é Jesus?
As comunidades de hoje
Para nós, hoje, parece que Cristo é o sobrenome de Jesus. Já não sabemos, nem na teoria, muito
menos na prática, o que isso significa. Se, quando o Evangelho foi escrito a comunidade cristã já tinha uma
organização, imagine hoje...
É necessário haver organização, se as tarefas e encargos não são distribuídos, nada acontece,
ninguém faz nada, não se sabe a quem recorrer. A tendência da organização, porém, é substituir o espírito.
Ficamos como o ferroviário cuja função era dar pancadas nas rodas do trem logo que ele parava na estação.
Ao aposentar-se e passar o encargo a outro, este perguntou por que devia dar aquelas pancadas e ele
respondeu “Eu fiz isso durante trinta e cinco anos e nunca perguntei por que, você já no primeiro dia quer
saber!”.
É preciso perguntar, sim, porque dizemos Jesus Cristo. É preciso, sim, ler e reler o Evangelho para
ver se não cometemos os mesmos enganos que cometeram os Apóstolos. Precisamos tentar entender o que o
pagão nos ensina quando reconhece Jesus como Filho de Deus exatamente quando ele acaba de morrer. Uma
vida longa é curta para se buscar entender porque, para salvar a humanidade, é preciso morrer de forma tão
humilhante.
5) JESUS É FILHO DE DAVI?
Janela
Filho de Davi era um título do Messias esperado. O Ungido ou Messias seria um rei descendente de
Davi, o modelo de rei do povo judeu. Marcos só duas vezes fala desse título. Uma vez é quando o cego de
Jericó (Mc 10,47-48) chama Jesus de Filho de Davi, mas todos o repreendem e proíbem que diga isso. A
outra vez é no conflito final em Jerusalém (Mc 12,35-37), quando Jesus, diante do povo empolgado com seu
ensinamento, questiona os letrados ou escribas, que afirmavam ser o Messias Filho de Davi. Jesus pergunta:
Como é que, no Salmo, Davi o chama de senhor? Então ele não é filho, é senhor de Davi!
As Comunidades Apostólicas
A comunidade que nos deu esse Evangelho viveu bem próxima da revolução que tomou o poder em
Jerusalém no ano 66. Os chefes da revolução, mesmo brigando entre si, davam-se o título de “Filho de
Davi”. Pretendiam ser o Messias, que quer dizer o Rei Ungido descendente de Davi, que haveria de restaurar
a grandeza do povo de Israel.
Para essa comunidade Jesus não é o salvador da pátria dos judeus, só deles. Jesus não é um Messias
nacionalista, um rei ungido para livrar Israel do Império Romano. A missão de Jesus é outra, ele não pode
ser confundido com João de Gíscala ou outros chefes zelotes. A salvação que ele traz vai mais a fundo e é
para a humanidade toda.
As comunidades de hoje
“Jesus me ama!” “Jesus é o meu amigão!” “A razão do meu sucesso, Jesus!” E tantas outras frases ou
pensamentos como esses acabam fazendo de Jesus um salvador mais imediatista e mais particular do que o
Filho de Davi para os judeus. Será que, às vezes, não reduzimos Jesus a um companheiro na busca da
solução dos problemas financeiros, afetivos e outros, inconfessáveis, como a satisfação da própria vaidade
ou da ganância pessoal, mesmo com o prejuízo de outros?
Que salvador, então, é Jesus? Ele salva quem? Salva de que? Se ele não é o salvador da pátria dos
judeus nem de nenhum outro povo particular, deve ser o salvador da humanidade toda. E a salvação da
humanidade em que consiste? Em fazer um remendo aqui e outro ali, ou em ir à raiz de todas as desgraças
que se abatem sobre os seres humanos em qualquer parte do mundo. Marcos nos deixa com esta pergunta:
Qual é a raiz de todas as desgraças da humanidade?
6) O EVANGELHO DOS SANTOS REIS.
Janela
Já vimos como neste Evangelho Jesus parece não gostar de ser chamado de Filho de Davi. Marcos
prefere dar a Jesus o título de Filho de Deus. Ele começa dizendo que seu Evangelho é início da Boa Notícia
de Jesus, o Cristo, o Filho de Deus. E, quase no final (15,19), quando Jesus acaba de morrer, o centurião ou
sargento dos soldados romanos, diz “De verdade esse homem era o Filho de Deus!”. No meio do Evangelho,
Espíritos Impuros (3,11) e um possesso (5,7) dizem que Jesus é o Filho de Deus, mas ele proíbe que o
digam. Duas vezes, no Batismo (1,11) e na transfiguração (9,7), Deus é quem diz que Jesus é seu filho.
As Comunidades Apostólicas
A comunidade que nos deu este Evangelho estava muito próxima da revolução dos zelotes contra o
poder romano na Palestina. O Evangelho foi escrito entre a tomada do poder em Jerusalém, que aconteceu
no ano 66, e a destruição da cidade e do templo, no ano 70.
Nesses anos em que comandaram a cidade de Jerusalém, os chefes revoltosos, mesmo brigando entre
si, davam-se os títulos do Salvador anunciado e esperado. Um desses era Messias, palavra hebraica, ou
Cristo, palavra grega, ambas significando Ungido, um rei ungido! Outros títulos eram Filho de Davi e Filho
de Deus, pois os reis eram chamados também de Filhos de Deus.
O que dava mais certo para Jesus era o de Filho de Deus, porque Isaías chamava de servo, na
tradução grega de „garoto? ou „guri?, querido de Deus, um personagem que haveria de salvar o povo através
do sofrimento. Por isso é que no Batismo e na transfiguração Deus chama Jesus de seu filho querido.
As comunidades de hoje
Hoje a gente fala de Jesus como Filho de Deus para identificá-lo com o Pai, correndo o risco até de
esquecer que ele era ser humano. A gente pensa muito em termos de essência, do que é, e não do que faz e
de como age. A gente põe Jesus igual a Deus, não será que é para ficar dispensado de seguir seu caminho,
seu exemplo?
O garoto ou guri querido de Deus que recebe o seu Espírito em Isaías 42,1-7 “leva o direito às
nações, não grita nem levanta a sua voz, lá fora ninguém escuta o que ele fala, não quebra o ramo já
machucado, nem apaga o pavio já fraco de chama, fielmente promoverá o que é de direito, sem amolecer e
sem oprimir, até implantar o direito no país e as ilhas distantes aguardarem a sua lei”.
7) JESUS, O CANGACEIRO.
Janela
O Evangelho segundo Marcos diz que Jesus foi crucificado entre dois bandidos. Que significava esse
termo para eles? A quem davam o nome de “bandidos”? Os numerosos pequenos proprietários da Galiléia
estavam perdendo o que tinham. Os muitos e pesados impostos cobrados pelo Império Romano, os dízimos
e taxas do Templo e os juros altos pagos a judeus ricos faziam com que perdessem suas terras, seu único
meio de vida. Tudo perdido, “partiam para o cangaço” como se dizia no nordeste brasileiro, uniam-se em
grupos para assaltar a fim de sobreviver e distribuir os alimentos nas aldeias ao povo que não tinha o que
comer. Esses eram os “bandidos”, movimento social e político semelhante ao de Lampião, “o rei do
cangaço”. Eles se deram o nome de zelotes.
As Comunidades Apostólicas
A comunidade primitiva que nos deu o Evangelho de Marcos não se envergonhava de se dizer
discípula de alguém que foi confundido com um “bandido”, um cangaceiro. Ele veio da Galiléia, lugar de
origem dos “bandidos”, era pobre e de uma aldeia pobre, teve um grupo grande de discípulos que o seguiam
em tudo, foi acolhido em Jerusalém como o Rei-Messias. Pouco antes de o Evangelho ser escrito, o mesmo
aconteceu com os líderes dos “bandidos”, os cangaceiros palestinenses que, em seguida, tomaram o poder
em Jerusalém. Mas a comunidade deste Evangelho sabia perfeitamente que Jesus ia muito mais ao fundo do
que os “bandidos” ou cangaceiros da Palestina. Jesus sonhava com uma mudança social e política, sim, mas
ia mais a fundo, queria arrancar pela raiz a causa da desordem social e política, a cobiça de glória e poder.
As comunidades de hoje
Muita gente boa hoje teria vergonha de dizer que Jesus foi confundido com um cangaceiro. Há certo
pudor (por quê?) de se dizer que Jesus é Evangelho ou Boa Notícia para os pobres, má notícia para os
poderosos que se engordam ás custas do sofrimento dos pequenos.
Em vez de dizer que ele foi mais a fundo do que os “bandidos”, costuma-se dizer que a mensagem
dele é totalmente outra, que nada tem a ver com as mudanças sociais e políticas pelas quais os “bandidos”
lutavam. Coloca-se Jesus no céu, inteiramente desligado da terra. Aqui cada um faz o que quiser e nós nada
temos a ver com isso, nossa mensagem é só para a outra vida. Será? Por que será?
8) O SERVO SOFREDOR.
Janela
Já vimos que o Evangelho de Marcos parte da pergunta “Quem é Jesus?”. É o Messias. Que Messias?
Não é o ungido rei dos judeus, o filho de Davi. Que modelo de Salvador é, então, Jesus? A mensagem de
Marcos é clara: É o Servo do Senhor de que falam quatro poemas ou “cânticos” do livro de Isaías. Ele salva
através da firmeza, da coerente resistência ao sofrimento. “Como cordeiro levado ao matadouro, ele ficou
calado” (Is 53,7). “Leva o direito às nações, não grita nem levanta a voz... sem amolecer e sem oprimir, até
implantar o direito no país e as ilhas distantes aguardarem a sua lei” (Is 42,2-4). Especialmente na narrativa
da paixão, Marcos mostra como Jesus realiza esses poemas do livro de Isaías.
As Comunidades Apostólicas
A comunidade que nos deu este Evangelho viveu no lugar de onde saíram os revoltosos que foram
tomar o poder em Jerusalém. Eram todos fracos e pobres, mas queriam o poder a qualquer a custo, não viam
outra solução. O caminho de Jesus não é esse. Para ser “união do povo” e “luz das nações”, “ele não quebra
o ramo já machucado, nem apaga o pavio já fraco de chama”. É preciso “carregar o peso dos pecados da
multidão”, “sofrer o castigo que todos mereciam”. Por isso “Jesus parece um homem castigado e humilhado
por Deus, não desvia o rosto dos insultos, mas deixará grande descendência”.
As comunidades de hoje
Duas tentações parecem nos atacar hoje. São a de buscar sempre mais recursos de dinheiro e de
poder, e a de fazer sucesso, ser estrela, “dar IBOPE”. Mas não é por aí que se pode contribuir para salvar a
humanidade. Ele “não fazia vista, nem tinha beleza a atrair o olhar, não tinha aparência que agradasse. Era o
mais desprezado e abandonado de todos”. Esse é o Salvador que o Evangelho segundo Marcos nos
apresenta. Para continuar a obra dele precisamos acreditar na comunidade pequena, no grupo de reflexão
humilde, nos gestos simples e humildes, na resistência diante das dificuldades, das incompreensões e das
perseguições. Confiar mais nos recursos pobres, simples e criativos de quem não tem dinheiro mesmo.
Tentar se levantar junto com os que estão derrubados. Deixar-se crucificar no meio dos “bandidos”. Esse é o
caminho da salvação da humanidade.
9) VOLTAR PARA A GALILÉIA.
Janela
O Evangelho segundo Marcos terminava de maneira muito surpreendente. Tanto que, logo de início,
foram acrescentadas notícias tomadas dos outros Evangelhos sobre a ressurreição de Jesus. É assim que os
versículos 9 a 20 do capítulo 16 fazem parte do Evangelho. Que havia de tão surpreendente na “primeira
edição” do Evangelho? O jovem de branco que as mulheres encontraram no sepulcro diz que Jesus
ressuscitou e manda que elas digam aos discípulos que voltem para a Galiléia, que aí verão Jesus. Elas,
então, fogem do túmulo e, cheias de medo, nada dizem a ninguém. Assim terminava o Evangelho. Só o
leitor fica sabendo que, para ver Jesus ressuscitado, deve voltar para a Galiléia.
As Comunidades Apostólicas
Galiléia é o lugar de origem de Jesus. Na Galiléia ele começou o seu movimento. Na Galiléia ele
formou a comunidade dos seus discípulos. Era preciso, então, voltar às origens, recomeçar tudo de novo. A
Galiléia era terra de pequenas aldeias, de gente pobre, explorada e desesperada. Foi de lá que saíram os
“bandidos” ou “zelotes” para tomar o poder em Jerusalém. Para os fariseus Galiléia era, ainda mais, lugar
“impuro”, porque muito próximo dos gentios, ou não judeus, e eles acabavam se misturando. Mas foi lá que
tudo começou e é por lá que tudo vai ter continuidade. No meio dos pobres, perto dos gentios e dos
“bandidos”, Jesus ressuscitado está com os seus discípulos.
As comunidades de hoje
O Concílio Vaticano II, realizado há mais de cinquenta anos, insistiu na volta às fontes do
cristianismo. É preciso beber na fonte, na mina. A água que passa por muitas caixas, tanques e
encanamentos, acaba carregando sujeiras que caem nos reservatórios e pega ferrugem dos encanamentos. A
proposta do Concílio de volta às fontes tinha a intenção de nos fazer beber água mais limpa. Isso aconteceu
no incentivo á leitura da Bíblia, na reforma da Liturgia e, principalmente, na busca do modelo das
comunidades primitivas. Igreja deve ser o Povo de Deus em pequenas comunidades. Aí a partilha da Palavra
de Deus e das orações alimenta a fé, a amizade e a solidariedade levam cada um a dar tudo pelos outros e a
sombra da comunidade será remédio para todos os males e sofrimentos humanos. Ainda precisamos muito
voltar à Galiléia.
10) NA GALILÉIA SE VÊ JESUS.
Janela
Quando, no capítulo 16 do Evangelho segundo Marcos, o jovem de branco manda dizer aos
discípulos que vão para a Galiléia, ele dá o motivo, “lá vereis Jesus ressuscitado!”. Ao contrário do
Evangelho segundo Lucas, em Marcos Jesus não aparece em Jerusalém e arredores, mas será visto apenas na
Galiléia, terra de origem sua e da comunidade de seus discípulos. Na Galiléia é que os discípulos poderão
ver Jesus. E, no final surpreendente do Evangelho, a informação não chega aos discípulos de então, mas
chega aos de hoje, aos leitores do Evangelho. Sabemos que é para voltar à Galiléia.
As Comunidades Apostólicas
É preciso reler o Evangelho, buscando ver Jesus presente na sua comunidade, ver o Ressuscitado
formando discípulos hoje como no ano 30. Isso confirma a hipótese de que o Evangelho segundo Marcos
tenha sido escrito na Galiléia. A comunidade que nos deu o Evangelho vê Jesus vivo e presente na sua
caminhada. Sai com ele da sinagoga ou comunidade religiosa dos judeus e com ele vai com os irmãos Tiago
e João para a Casa dos irmãos Pedro e André. Na Casa, é Ele quem os instrui, orienta e explica o significado
de suas palavras. Quando as multidões de toda a parte vêm à procura dos discípulos, Jesus está no mesmo
barco, para apontar rumos para a humanidade. Eles têm olhos para ver Jesus vivo em seu meio..
As comunidades de hoje
A tentação hoje é de buscar o espetáculo, o que dá show, o mágico e miraculoso. Precisamos dar
mais atenção à pequenez e humildade do dia a dia. Não é preciso um mega-show para ver Jesus. Ao
contrário, o grande espetáculo corre o risco de esconder Jesus e só mostrar o Pop-star, o ator estrela que
comanda o espetáculo.
Jesus vivo pode ser visto na Galiléia do dia a dia, no culto ou celebração da comunidade, na reunião
do grupo de reflexão em Casa. Aí uns procuram ajudar os outros a descobrir o significado mais profundo e
atual do Evangelho. Aí dá para ver Jesus ressuscitado. “Em Casa ele explicava tudo aos discípulos”. O
Ressuscitado é visível nas soluções dos pequenos e grandes problemas do dia a dia que seus discípulos, de
maneira silenciosa e escondida, procuram levar a todos os sofredores. Isso acontecia na Galiléia e acontece
nas humildes galiléias de hoje.
11) A MENSAGEM É METANÓIA.
Janela
No Evangelho segundo Marcos a mensagem de João Batista, de Jesus e dos Apóstolos (6,12) se
resume em uma palavra: metanoia. Que palavra é essa? Que significa isso? A palavra é grega, mas o leitor
sabe o que ela significa. Você não sabe que metamorfose é mudança de forma, é a lagarta tornar-se
borboleta? E paranóia? Não é problema de cabeça? Então metanoia é mudança de cabeça, de mentalidade,
de modo de pensar. João anunciava um “batismo de metanoia”, geralmente traduzida por „de conversão? ou
„de penitência? (1,4). Jesus prega na Galiléia a boa notícia (evangelho) do reinado de Deus e convoca para a
metanoia com a fé ou compromisso com a Boa Nova do Reino (1,14-15).
As Comunidades Apostólicas
Quando o Evangelho foi escrito, o Império fazia a cabeça do povo. A mentalidade era de patronocliente,
uns poucos, os poderosos, são os bons os que protegem os mais fracos, são os patronos. A maioria é
fraca, dependente, precisa dos mais fortes, é cliente deles. O patrono dá alguma força para o cliente e o
cliente dá toda a força para o patrono. O Imperador é o patrono universal, um verdadeiro deus.
Na Galiléia aqueles que tinham perdido tudo por causa da exploração do sistema do Império,
queriam lutar com as mesmas armas, queriam fazer uma revolução contra Roma. E achavam que o reinado
de Deus era só para eles, judeus, eles seriam um povo abençoado e feliz. Pensavam numa solução violenta e
nacionalista.
No reinado de Deus é diferente, aí todos são iguais, “irmãos”. Isso não se impõe pela força nem se
limita a uma nação. Chegou o reinado de Deus, é preciso mudar as cabeças, é preciso de metanoia.
As comunidades de hoje
O Império continua fazendo a cabeça das pessoas. Os dirigentes dos Estados Unidos acham que eles
são a Roma de hoje, que lá é o centro do Império global. Mas o Império hoje é do dinheiro e do mercado. E
a lei do mercado é a lei do mais forte. É a competição, é a lei do “vamos ver quem pode mais!”. E “Ai dos
vencidos!”, o destino dos incompetentes é desaparecer, é a morte.
Será que o sistema Patrono-cliente já acabou mesmo? A gente acredita mesmo no Evangelho como
boa notícia da chegada do reinado de Deus, onde todos são iguais, “irmãos”? Não precisamos mais de
mudança de mentalidade, de metanoia?
12) NA SINAGOGA.
Janela
Logo após reunir os primeiros discípulos, os quatro irmãos (Mc 1,16-20), Jesus (1,21-28) vai com
eles à reunião da comunidade religiosa dos judeus, a Sinagoga, para anunciar a sua mensagem. Ele é
totalmente diferente dos mestres que eles tinham. Mas aquela instituição religiosa não o aceita, ali está o
homem com mau espírito. Reconhece que a mensagem de Jesus significa o fim para os mestres da
instituição que ele representa. Mas Jesus o vence e provoca a admiração, senão a simpatia, dos que estavam
lá dentro. E a fama de Jesus começa a correr por toda a Galiléia.
As Comunidades Apostólicas
A comunidade deste Evangelho formou-se e firmou-se na Galiléia. E viveu um conflito com a antiga
religião. Seus mestres já não tinham o que dizer e viviam a repetir as velhas lições, que nada diziam para a
realidade atual. Aquele grupo de “irmãos”, André e Simão, Tiago e João, Jesus vivo no meio deles, tinha o
que dizer e falava com a autoridade de quem primeiro faz, para depois falar. Eram ameaça para a Sinagoga,
a velha instituição religiosa, já sem vida, onde estava também (3,1) o homem da mão seca, quer dizer, sem
ação, sem iniciativa, sem coragem de agir.
A comunidade de irmãos, Jesus vivo no meio deles, quer que as pessoas tenham iniciativa, não
fiquem paralisadas por medo do pecado, prefiram promover a vida em vez de se preocupar em guardar o
sábado (3,4).
As comunidades de hoje
Não vivemos hoje em conflito com a Sinagoga, a comunidade religiosa dos judeus. É dentro da nossa
Igreja que podemos encontrar modos de pensar e ensinar semelhantes ao dos antigos mestres fariseus.
Dentro da nossa Igreja podemos ver o que leva à neurose de evitar pecado e paralisa as pessoas. Jesus quer
gente livre, lutando por um ideal, um sonho. Não quer indivíduos doentios que veem pecado por toda a parte
e são incapazes de agir, de fazer alguma coisa, de desrespeitar os sábados, se preciso for, para dar mais vida
ao ser humano.
Isso é uma ameaça para quem tem medo de sair do lugar, de abrir as janelas a fim de que o vento do
Espírito entre e renove a face das comunidades, da Igreja toda e de toda a terra. É uma ameaça para quem
prefere fechar as janelas por medo do vento que vem de Deus. É uma ameaça para quem prefere se fechar
para a realidade e para o Espírito.
13) NA CASA DE SIMÃO.
Janela
Depois de sair da Sinagoga, a instituição religiosa antiga, Jesus e os discípulos vão para a casa dos
irmãos André e Simão, com os irmãos Tiago e João (1,29-39). A casa é a comunidade de irmãos. Mas,
mesmo aí nem tudo é perfeito, a sogra, a segunda mãe, está com uma febre, incapaz de servir. Jesus dá-lhe a
mão e a ajuda a levantar-se para que ela possa servir. Ainda no ambiente judaico, terminado o descanso do
sábado, Jesus cura a todos, mas no raiar do novo dia, sai a pregar por toda a Galiléia.
As Comunidades Apostólicas
As comunidades que nos deram esse Evangelho reuniam-se nas casas, não mais nas sinagogas. O
movimento cristão afastava-se da religião judaica. Na comunidade todos são irmãos, cada qual presta um
serviço determinado, mas todos são iguais, não há uma escala de importância, de poder e autoridade.
Mas nem tudo é perfeito. A Galiléia estava fervendo, os revoltosos, que dali tinham saído, já haviam
tomado o poder em Jerusalém. A febre atual era o sonho da independência política e econômica. Só se
pensava na revolução e nos seus líderes, os esperados salvadores da pátria. Em servir e colaborar uns com os
outros não se pensava. A mão de Jesus pode ajudar essas comunidades a deixar de lado a febre, ficar de pé e
passarem a servir umas às outras. Depois poderão curar os males da humanidade sofredora e levar a
mensagem por todo o derredor.
As comunidades de hoje
Hoje ainda haveria febres atacando nossas comunidades cristãs? Quais seriam essas febres? Quais
seriam esses calores passageiros, sintomas de alguma infecção, de alguma doença mais ou menos grave?
Hoje parece que tudo é descartável, rapidamente consumível. Até mesmo os movimentos de caráter religioso
parecem destinados a um consumo rápido, a ser apenas uma febre momentânea que, enquanto é febre,
denota falhas mais graves no organismo mesmo da Igreja.
A febre não deixa servir, faz ignorar a multidão sofredora em torno da casa, em torno da
comunidade. Só depois que a febre passa, é possível pensar nos outros, dentro ou fora de casa, colaborar
para que todos os males sejam curados. Depois que a febre passa é necessário, no raiar de um novo dia,
despertar outras comunidades pela redondeza.
14) DEMÔNIOS E ESPÍRITOS IMPUROS.
Janela
O Evangelho segundo Marcos fala com frequência em endemoniados, demônios e também
em espíritos impuros. Há ainda o episódio do espírito mudo ou surdo-mudo (9,14-29). A narrativa deixa
claro de que se trata de um caso de epilepsia, certamente conjugado com surdez e consequente mudez.
Algumas vezes os espíritos impuros (1,34 e 3,11-12) ou os demônios (1,34) sabiam quem era Jesus, mas ele
proibia que o dissessem. Jesus tem autoridade sobre eles e dá essa autoridade aos Apóstolos quando os envia
a pregar (6,7).
As Comunidades Apostólicas
Os escritos dos rabinos antigos falam em demônios muito mais do que os Evangelhos. Fazia parte da
tradição judaica. Diziam que Deus criou os demônios na tarde do sexto dia, mas não teve tempo de dar-lhes
um corpo, pois com o pôr do sol começava o sábado. Por isso eles ficam vagando. Esfregam-se nas pessoas
para gastar-lhes as roupas e provocar doenças. Estão em toda a parte.
Na época o atraso era grande e o povo muito explorado, isso aumentava as doenças e levava alguns à
loucura e outros à revolta fanática e irracional da rebelião violenta contra Roma. Esses estavam à procura do
Messias, o salvador da pátria deles, papel que Jesus não queria fazer. A religião judaica estava decadente e
seus mestres desacreditados. E a aceitação de Jesus era grande. O Evangelho usa as imagens de demônios e
maus espíritos para falar dessa realidade e do que Jesus faz como início do reinado de Deus.
As comunidades de hoje
Hoje a medicina, a psicologia, a parapsicologia têm conhecimentos e recursos para analisar,
interpretar e buscar solução para a maioria os problemas de saúde física e mental. O mal hoje é atribuir a
seres sobre-humanos a causa dos problemas. Colocá-las fora do nosso alcance torna mais difícil, senão
impossível, buscar uma solução.
É verdade que exorcismo é mais barato do que tratamento psiquiátrico, mas culpar o demônio por
tudo o que acontece só leva ao desespero e à neurose.
Ajuda mútua, carinho e atenção uns com os outros – na raiz de muitos problemas está a simples
carência afetiva – são meios ao nosso alcance para fazer o que Jesus fez, libertar as pessoas dos seus
demônios interiores.
15) OS QUATRO DA MACA.
Janela
Jesus, em Casa, começa a formar seus discípulos (Mc 2,1-12). Ajunta tanta gente que não há mais
lugar nem à porta. Os mestres judeus ainda estão ali sentados, ensinando. Aparecem quatro carregando um
paralítico numa padiola. Como a passagem pela porta está impedida, sobem ao terraço, abrem um buraco e
por ele descem o paralítico até onde Jesus está. Jesus, contra o parecer dos mestres, livra o homem do
pecado e da paralisia.
Se não é de todo impossível, o fato é pelo menos muito estranho. Só pode ser bem entendido pelo
simbolismo de cada detalhe.
As Comunidades Apostólicas
A comunidade cristã que nos deu este Evangelho começou dentro da religião judaica. Os Escribas ou
Mestres da Lei de Deus é que tinham a palavra. Todos queriam tornar-se discípulos de Jesus e não
permitiam que os de fora, os dos quatro cantos do mundo chegassem. Esses eram considerados pecadores e
paralíticos, incapazes de colaborar para o reinado de Deus. Mas eles insistem e chegam até onde está Jesus.
É o que significa o paralítico-pecador chegar a Jesus pelo teto. Ele simboliza os que chegam dos quatro
cantos do mundo.
Jesus, primeiro, os tira da condição de pecadores, mesmo contrariando os mestres do judaísmo.
Depois os livra da paralisia e, então, eles passam a carregar a maca onde eram carregados, passam a ser
senhores da própria vida, capazes de se movimentarem por si mesmos. A comunidade, mesmo contrariando
os mestres, acolhe os não judeus, não os tem mais como pecadores nem como incapazes.
As comunidades de hoje
Sabemos acolher bem e dar responsabilidades aos que estão chegando, aos que “caem de
paraquedas”? A tentação, às vezes, é achar que quem não sabe tudo não sabe nada, que quem não pensa
exatamente como a gente está por fora ou é um alienado ou imaturo. Não é mais fácil excluir como perigoso
ou incapaz do que ajudar a crescer, a superar os próprios limites e dar a colaboração de que cada um é
capaz? Quem não é capaz de nada? Como será capaz se não começar?
Não dar qualquer responsabilidade ou exigir o que evidentemente está acima das próprias forças é o
mesmo que chamar de incapaz e paralítico. Só os que se consideram os mestres acham que os outros são
pecadores e paralíticos.
16) A FAMÍLIA DE JESUS.
Janela
O capítulo 3 do Evangelho segundo Marcos traz algumas afirmações que contrariam muito nossos
sentimentos a respeito da família de Jesus, especialmente de sua mãe, Maria. No versículo 21 os familiares
de Jesus queriam pegá-lo, pois diziam que ele estava louco. Pouco adiante (31-35), sua mãe e os outros
familiares chegam, mas não entram na Casa, símbolo da comunidade dos discípulos, e o chamam lá fora.
Jesus não sai e responde que sua família são os discípulos. Será que Maria reuniu os parentes para pegar
Jesus e levar para casa, achando que ele tinha ficado louco? Ela não foi discípula de Jesus, não quis entrar
para a comunidade?
As Comunidades Apostólicas
A comunidade que nos deu este Evangelho vivia na Galiléia e teve dificuldades com o pessoal de
Jesus, seus parentes e conterrâneos. Jesus é judeu, nascido dessa gente, crescido no meio dela, no seu
ambiente cultural e religioso, essa gente é a mãe dele e são os irmãos dele, a família dele. Mas eles não o
aceitaram. Pensavam que era loucura dizer que Jesus é o Messias, a salvação da humanidade. Ele foi um
visionário, um maluco. É loucura acreditar nele, pois um crucificado é um amaldiçoado (Dt 21,22-23).
A mãe, não Maria, a origem judaica de Jesus, sua família étnica e religiosa não acredita nele, não
entra para se tornar discípula. A comunidade dos discípulos é, agora, a verdadeira família de Jesus.
As comunidades de hoje
Nós somos os parentes de Jesus, que se sentem donos dele e não o querem deixar cometer loucuras,
mas ficam de fora, ou somos os verdadeiros discípulos, que, como ele diz, fazem a vontade do Pai?
É preciso entrar na casa onde está Jesus. É preciso deixar-se instruir por ele e fazer a vontade do Pai.
A vontade do Pai é o projeto de tornar a terra semelhante ao céu, não ao inferno ou ao purgatório,
como se ensinava aos escravos no Brasil. “Na África – diziam aos negros – vocês estavam no inferno, aqui
estão no purgatório para ganhar o céu”. Jesus não. Jesus diz que a vontade do Pai é que o céu comece a se
realizar aqui na terra, que essa vontade seja feita assim na terra como no céu. Isso é tolice, é loucura, é
querer o impossível, pensamos muitas vezes. Para nós também, Jesus não terá ficado louco?
17) IR PARA CASA SEM ENTRAR NO POVOADO.
Janela
Nosso Evangelho deste ano traz um episódio (Mc 8,22-28) estranho. Quando Jesus chega ao povoado
de Betsaida, levam-lhe um cego, pedindo que toque nele. Jesus o leva para fora do povoado, põe-lhe saliva
nos olhos e impõe-lhe as mãos. O cego começa a enxergar, mas ainda confunde gente com árvore. Jesus
impõe-lhe as mãos sobre os olhos e ele começa a enxergar claro, mesmo de longe. Jesus o manda para sua
casa proibindo-o de entrar no povoado. Como ele poderá ir para casa sem entrar no povoado onde morava?
As Comunidades Apostólicas
A maioria das traduções atuais tenta disfarçar a incoerência, dizendo que Jesus o despediu e não
“mandou para a sua casa” como está no grego. Alguns copistas antigos modificaram a segunda parte para
não contes a ninguém no povoado. O fato é que a comunidade que nos deu o Evangelho não o lia como
verdade histórica, mas como narrativa simbólica.
Ir para a sua casa, significava ir para a sua comunidade cristã, ir para o seu ambiente de fé. Entrar no
povoado significava aceitar a mentalidade da cidade, do Império, pois Betsaida havia sido transformada por
Herodes em cidade grega. O Batismo era chamado de “iluminação”, o discípulo é iluminado, tem os olhos
abertos, enxerga a realidade com os olhos de Deus. Mas, se aceitar novamente o modo de pensar, a cultura
do Império, se entrar na cidade ou deixar a cidade entrar nele, voltará a ser cego. Só na comunidade, a sua
casa, onde uns abrem os olhos dos outros, ele enxergará cada vez mais longe.
As comunidades de hoje
Infelizmente perdemos a noção de que o discípulo de Jesus deve ter um olhar diferente, deve ser
capaz de enxergar mais profundamente. Achamos muitas vezes que o cristão é um acomodado, um
conformado, um defensor dos critérios do Império atual, o capitalismo, o mercado.
Não. O cristão é alguém que se afastou da maneira de pensar deste mundo e agora enxerga diferente,
enxerga claro, mesmo de longe, não é capaz de aceitar a lógica do mercado. Vê que a competição leva uns a
engordarem demasiadamente, enquanto a grande maioria, os incompetentes, os vencidos emagrecem, vivem
como excluídos ou são eliminados. Vê que isso é o oposto do reinado de Deus. Mas, se entra na cidade, se
ele se deixa conduzir pela cultura global, vai começar a confundir coisa com gente e acabará cego de novo.
18) A CASA E A PRAIA.
Janela
Muitas vezes, especialmente nas duas primeiras partes, ou seja, na Galiléia e no caminho para
Jerusalém, o Evangelho segundo Marcos faz questão de dizer que Jesus estava em casa ou na beira do mar.
À beira do mar (1,16; 2,13; 3,7; 4,1) Jesus fala às multidões, cura doentes e sofredores e chama discípulos,
não só os que eram pescadores, mas também Levi, que era fiscal de taxas públicas ou publicano. Em Casa,
mesmo a caminho de Jerusalém (9,28), Jesus explica, orienta e forma seus discípulos.
As Comunidades Apostólicas
A Casa é a comunidade dos discípulos. Na primeira referência (1,29) é a casa de Simão e André,
onde Jesus, tendo saído da Sinagoga, entra com os outros dois irmãos. No princípio (2,1 e ss.) ela está cheia
de judeus que impedem os gentios de chegar, mas eles entram nem que seja pelo teto. É a comunidade onde
os discípulos crescem na intimidade com Jesus.
O mar é símbolo da morte. Imaginavam o lugar dos mortos nas águas subterrâneas com as quais se
comunicavam as águas do mar. A multidão sofredora e necessitada de uma instrução de Jesus está à beira do
mar, à beira da morte. Dali ele chama os discípulos que, no mesmo barco com ele, se tornam vencedores da
morte e podem instruir a multidão à beira do mar.
As comunidades de hoje
Falta-nos hoje a distinção entre a casa e a praia, a distinção entre Igreja e mundo. Somos herdeiros da
cristandade, quando o mundo se identificava, pelo menos formalmente, com a Igreja. Então, tudo e todos
eram católicos, o mundo já não precisava ser salvo, não estava à beira da morte. Símbolo do domínio
português que fincava o pé nas terras de Santa Cruz foi exatamente uma cruz. Em Ribeirão Preto, à Rua São
Sebastião ficava o cine São Paulo (tudo católico) que só passava filmes pornográficos. Cristandade é uma
herança que muitos querem recuperar.
A Casa, a comunidade cristã, é onde os discípulos de Jesus hoje se formam, crescem no
compromisso com ele. As celebrações, as reuniões, os grupos de reflexão, os momentos de oração pessoal e
coletiva, tudo deve contribuir para isso, só para isso, só para fazer crescer no compromisso com Jesus.
Depois é preciso ir para a praia, para a beira do mar, acudir com a ação e com a palavra a humanidade à
beira da morte.
19) AS TRÊS PARTES DO EVANGELHO.
Janela
Já familiarizados com o Evangelho de Marcos, vamos entender como ele está organizado em etapas.
A primeira é a da Galiléia, do início até 8,26, a segunda é a do caminho, de 8,27 até 10,52 e a terceira é a de
Jerusalém do capítulo 11 até o final. Na Galiléia ele proíbe que digam que ele é o Messias, no caminho
explica que tipo de Messias é ele, em Jerusalém realiza sua missão de servo sofredor. Na Galiléia forma sua
comunidade a partir da Sinagoga, no caminho prepara os discípulos para o fracasso da cruz, em Jerusalém
enfrenta os inimigos, é crucificado e sai vitorioso.
As Comunidades Apostólicas
A comunidade que nos deu este Evangelho formou-se e crescia na Galiléia, mas enfrentou
dificuldades. Os zelotes, que pensavam vencer o Império Romano pelas armas, queriam um Messias político
nacionalista. Queriam os cristãos na revolução com eles. Os endiabrados chamam Jesus de Messias. Precisa
mudar o pensamento (metanoia).
O caminho para Jerusalém explica que o caminho e o objetivo são outros. O caminho é a cruz e o
objetivo é tirar pela raiz o mal da humanidade toda.
O confronto com os inimigos em Jerusalém revela que a velha instituição religiosa está falida, secou
como a figueira. Quando Jesus morre, é um não judeu que o reconhece como Messias. Não judeus tornam-se
cristãos.
As comunidades de hoje
Formar-se e crescer, entender como é que Jesus salva e pôr mãos à obra é um bom programa para as
comunidades cristãs de hoje.
Primeiro precisamos entender o que significa a Boa Notícia (Evangelho) do reinado ou Império de
Deus e porque ele exige uma mudança de cabeça (metanoia). Isso se aprende na Galiléia, na comunidade, no
pequeno grupo de reflexão, na Casa, onde Jesus explica tudo aos discípulos. Isso se põe em prática à beira
mar, onde a humanidade, à beira da morte, espera a palavra e a ação de Jesus.
O passo seguinte é caminhar para a morte em Jerusalém. Na caminhada, uns aplaudem, uns seguem
com medo, enquanto os dirigentes disputam poder. Ainda é difícil entender que o caminho é a cruz, o
fracasso, a humilhação.
Difícil é entender também a necessidade do confronto. Quem não desmascara, se mascara. O
fracasso não é definitivo e leva de volta à Galiléia, ao começo.
20) FICAR E SER ENVIADOS.
Janela
Jesus começa a anunciar a boa notícia do reinado de Deus e a convidar todos para a mudança de
cabeça (metanoia). À beira do mar chama os primeiros discípulos, entra na Sinagoga, mas encontra
resistência e dificuldade, sai para a casa dos irmãos.
Os dirigentes religiosos e políticos dos judeus já pensam eliminá-lo. Ele sobe a montanha e chama
aqueles que quer, desses escolhe doze para ficarem com ele e serem enviados (3,13-15). Como ficar, se
serão enviados? Como ser enviados, se devem ficar? Sairão em missão e continuarão com ele?
As Comunidades Apostólicas
A comunidade que nos deixou o Evangelho segundo Marcos sabia da importância dos Doze, sabia
que os dirigentes da Igreja devem ser os pais das doze tribos do Novo Israel. Sentia, porém, que eles não
podem se afastar de Jesus.
Os Doze já morreram, outros estão no lugar deles. Mas devem ficar com Jesus que, para os mestres
judeus, tem parte com Satanás, ao ver dos parentes está louco (3,20-35). Com Jesus devem aprender a falar
com as multidões, usando parábolas, comparações (4,1-34). Com Jesus devem arriscar-se a ir para o outro
lado (4,45-41). Com Jesus devem ser capazes de livrar das Legiões do outro Império os que convivem com a
morte (5,1-20). Com Jesus devem aprender a ser discriminados na própria pátria (6,1-6). Mas devem sair em
missão, ir libertar do sofrimento e anunciar a Boa Notícia da chegada do império de Deus (6,7-13).
As comunidades de hoje
O grande perigo hoje é a rotina. As práticas religiosas são sabidas e conhecidas. Basta executá-las e
está tudo feito, a missão está cumprida. As devoções (promessas, novenas, orações e coisas semelhantes) e
os gestos sacramentais têm força por si mesmos, basta fazer tudo como está estabelecido e o resultado está
garantido.
Com essa maneira de pensar, a gente perde o contato com Jesus, afasta-se dele, não fica com ele, já
não sabe ou não se interessa pelo que ele quer. Só pensa em si, no próprio interesse, que, espera, ele venha
satisfazer, ou pensa na própria função e sente-se tranquila e merecedora de uma recompensa, porque
cumpriu tudo corretamente. Ele não diz nada, não tem nada a dizer...
Quem não fica com ele não pode ser enviado.
21) NO CAMINHO: OS DOZE QUEREM O PODER.
Janela
No caminho para Jerusalém, Jesus explica que tipo de Messias ou Cristo é ele, fala de sua exclusão
pelas autoridades políticas e religiosas, da condenação, da humilhação da cruz e da vitória final da
ressurreição. Mas os Doze que ele escolheu não aceitam a ideia, o pensamento deles é outro. Da primeira
vez, Pedro corrige Jesus, não quer que ele fale nisso (8,31-33). Da segunda (9,30-32), ele está a sós com os
discípulos, eles não entendem, mas ficam com medo de perguntar. Da terceira vez (10, 32-45) Tiago e João
interrompem a fala de Jesus para pedir os primeiros lugares no poder. Era isso o que os Doze queriam.
As Comunidades Apostólicas
Os Doze Apóstolos tinham tanta dificuldade em entender Jesus? Seu pensamento estava tão longe
assim? O Evangelista, como diz o povo, “está batendo na cangalha para o burro entender”. Quando o
Evangelho é escrito, os Doze já se foram. Os que ficaram no lugar deles, os dirigentes atuais das
comunidades é que estão sendo tentados pelo poder, estão sendo tentados a esquecer que o caminho de Jesus
é o da cruz, da pobreza, do fracasso, da humilhação. Não fazia 40 anos que Jesus tinha sido crucificado e já
brigavam pelo poder! Mas por aí, o mundo não é salvo, a humanidade continua no caminho da morte, a
ressurreição não vem. O caminho é a cruz.
As comunidades de hoje
Hoje isso não acontece. Ou acontece? Do Papa, passando pelos bispos e pelos padres, até o mais
humilde dirigente de culto ou celebração, catequista ou animador de grupo de reflexão, todos somos
tentados pelo poder, todos queremos mandar e ser obedecidos sem restrição ou questionamento. Todos
somos tentados a nos servir dos outros, em vez de servi-lhes.
O caminho alerta para não nos deixarmos levar pela tentação de ser servidos em vez de servir (10,41-
45). O caminho nos ensina que seguir Jesus é abraçar a cruz e colocar nos ombros a sua vergonha, deixando
de lado o próprio bem estar, além da vaidade, do orgulho, da arrogância (8, 34-38). O caminho nos ensina a
buscar o último lugar na singeleza de uma criança (9,33-37 e 10, 13-16). O caminho nos ensina a abandonar
a riqueza, mesmo que seja tão difícil como um camelo passar pelo fundo da agulha (10,17-31).
22) NO CAMINHO: O CEGO SEGUE.
Janela
Na última etapa do caminho, à saída de Jericó para Jerusalém, o Evangelho traz o episódio do cego
Bartimeu. O seu nome significa filho da honra, da glória, do prestígio, alguém que só pensa nisso. Quem só
pensa na própria gloria é mendigo de aplausos, sentado, sem andar, e à beira do caminho. Sabendo que era
Jesus que passava, começou a clamar: “Filho de Davi, tenha pena de mim!” Pensa em Jesus como Messias
glorioso, é cego! Mas pede que Jesus tenha pena dele, quer deixar a cegueira. Jesus o chama. Ele joga o
manto para trás, pula de pé e vai até Jesus. Queria enxergar. Jesus lhe diz: “Tua fé te salvou”. E ele foi
seguindo Jesus no caminho.
As Comunidades Apostólicas
O Batismo nas comunidades primitivas era chamado de “Iluminação”, era o abrir os olhos, passar a
enxergar. Este cego que dá um pulo e sozinho vai até Jesus e, porque tem fé, começa a enxergar, é símbolo
daquele que foi batizado, do novo discípulo. Mc 10,32-45 dá uma ideia do que se via na comunidade:
Alguns admiravam a valentia de Jesus, eram apenas fãs. Os que o seguiam de verdade iam com medo e os
dirigentes estavam mais preocupados com a glória do poder.
Agora, Bartimeu, o mendigo cego que estava sentado à beira do caminho, e que chama Jesus de
Filho de Davi, o Messias glorioso,e representa os Doze, brigando ainda pela glória do poder, pede que Jesus
tenha pena de sua cegueira. O pedido, apesar de todos os mal entendidos, significa sua fé, o reconhecimento
de sua cegueira, é um cego que quer enxergar. A fé o faz enxergar e, então, ele vai seguindo Jesus pelo
caminho que leva à morte de cruz.
As comunidades de hoje
Existem, sem dúvidas, várias atitudes diante de Jesus. Há os meros admiradores, são a torcida, não
entram no jogo. Há a multidão que só quer curas, milagres e solução dos problemas pessoais e há os que
lutam para transformar o mundo, iluminados pela fé em Jesus. Enfrentam sérios problemas e dificuldades,
vão com medo, mas procuram segui-lo.
Há também muitos cegos sentados à beira do caminho. Não enxergam, não caminham, ficam à
margem, a história passa e eles nada fazem. O cego resume tudo o que vinha acontecendo por todo o trajeto
da subida: Jesus fala na humilhação de ser condenado pelas autoridades e de ser morto como um maldito de
Deus e, enquanto isso, os Doze, os chefes, estão brigando pela glória do poder.
Mas com a fé em Jesus, reconhecendo a própria cegueira, podem abrir os olhos. Serão capazes de
jogar para trás o manto que os cobria, a sua segurança, a própria vida, e, pulando de pé, podem começar a
seguir o caminho que passa pelo fracasso da cruz.
23) O CONFRONTO: A FIGUEIRA SECA.
Janela
Depois da entrada triunfal em Jerusalém, Jesus vai ao templo e observa. À tarde sai da cidade, de
manhã volta. Vê uma figueira frondosa, mas sem fruto e diz: “Ninguém mais coma fruto teu!”. Expulsa os
negociantes do templo e fala ao povo embevecido, enquanto os mestres pensam matá-lo. Sai da cidade.
Quando volta na manhã seguinte, a figueira está seca. As autoridades questionam suas atitudes, mas ele as
deixa sem resposta (11,1-33).
A comparação da vinha ou lavoura fala dos chefes, que o entendem (12,1-12). Seguem-se discussões
com dirigentes e o capítulo 12 termina com a oferta da viúva. Depois vem a fala sobre guerra judaica e a
destruição de Jerusalém.
As Comunidades Apostólicas
Que significado teria para a comunidade do Evangelho a figueira seca? A figueira bonita, mas sem
frutos, lembrava as belas cerimônias do templo, que não resultavam em nada, a não ser em riqueza para os
Sumos Sacerdotes. A religião judaica, centralizada no templo, estava acabada. Nem era mais tempo de ela
dar frutos. O tempo é agora, o fruto que Deus espera vem agora. A comunidade Cristã são os outros
lavradores a quem Deus confia sua vinha (12,9). Aquela instituição tão bem organizada não encontra
resposta para Jesus (11,33; 12,12; 12,17; 12,27; 12,34). Os escribas só querem aparecer (12,38-40),
enquanto a pobre viúva é símbolo da comunidade. Na sua pobreza, dá o que tem. A guerra judaica, em
andamento, com a consequente destruição de Jerusalém (cap. 13) será a morte da figueira frondosa.
As comunidades de hoje
A figueira seca podemos ser também nós hoje, árvore frondosa e bonita que nada produz. Que frutos
temos produzido? Quais os resultados práticos de nossa fala de Deus, celebrações caprichadas, demoradas
orações e busca de emoções religiosas? Muito proveito para nós mesmos? Ou nossa prática de vida contrasta
tanto com este mundo, que nos vemos perseguidos e precisando nos esconder, distantes dos palcos do
mundo, vivendo na clandestinidade como Jesus em Jerusalém?
Os frutos que Deus espera são consequências da obediência ao único mandamento, apoiar-se em
Deus e amar o próximo (12,28-34). É preciso dar tudo de si como a pobre viúva. Não é a aparência que
conta, mas o resultado. Aprender a lição da figueira!
24) A VITÓRIA: OS DOIS JOVENS.
Janela
A narrativa da paixão de Jesus segundo Marcos está emoldurada por duas figuras de jovens. No
início, quando Jesus é preso (14,51-52) um jovem o seguia coberto com um lençol sobre o corpo nu. Eles o
pegam, mas ele abandona o lençol e foge nu. No final, quando, na madrugada do domingo, as mulheres
entram no sepulcro (16,5-6) veem um jovem sentado à direita, vestido de branco. Ele diz que Jesus
ressuscitou e que na Galiléia os discípulos poderão vê-lo.
As Comunidades Apostólicas
O primeiro jovem, o que deixou o lençol nas mãos dos soldados e fugiu nu, lembra o que se via na
comunidade, novos discípulos, animados, querendo seguir Jesus, mas apenas com capa de discípulo como
um lençol sobre o corpo nu. O pretexto de seguir Jesus era apenas uma capa a encobrir a nudez do seu vazio.
À primeira ameaça de perseguição, na primeira dificuldade, abandonavam tudo. Era símbolo também de
todos, pois “todos os discípulos fugiram” (14,50). Jesus fica sozinho. Esse caminho ele o faz sozinho.
O jovem visto pelas mulheres no túmulo não é o anjo de Mateus nem os dois homens de Lucas. É
jovem, cheio de vida, está recoberto de branco, a cor da vitória (diríamos hoje com faixa de campeão) e
sentado à direita. À direita de que ou de quem o evangelista não diz, seus primeiros leitores entenderam...
“Vereis o Filho do Homem...” (14,62). A fé era esta, Jesus venceu, levantou-se, está à direita de Deus e pode
ser visto na Galiléia, ou seja, no nosso meio.
As comunidades de hoje
Discípulos só de fachada, hoje também se veem. Aliás, a nossa civilização é muitas vezes chamada
de cristã. O catolicismo ainda faz parte da cultura brasileira. Batizar, casar na igreja, celebrar as exéquias é
tão comum como comer arroz com feijão. Todos o fazem e já não sabem por quê.
Nossa fé na ressurreição pode ser mais esclarecida. A ressurreição de Jesus não é a simples
revivescência de um cadáver, nem um espetáculo, um show de pirotecnia. A ressurreição de Jesus significa a
vitória da vida sobre a morte, vitória da solidariedade sobre a exploração, vitória da humildade sobre a
arrogância. A ressurreição de Jesus significa uma vida nova para a humanidade. A ressurreição de Jesus
significa a presença dele no meio dos seus discípulos, iluminando e dando forças.